quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Desumanização na Literatura, organizado por Massi e Nakagome



É inegável que a leitura possui diversos benefícios, como o aumento do vocabulário, o desenvolvimento da interpretação de textos... e a possibilidade de desenvolvermos empatia, de nos humanizarmos. Isto é, humanizar no sentido de permitir que possamos (re)conhecer o mundo, o que nos cerca e, principalmente, a nós mesmos – de modo a (indiretamente) nos tornarmos pessoas melhores para percepção do mundo pela visão que outras pessoas nos trazem; pela leitura crítica e que busca ser livre de preconceitos. As inúmeras realidades e a diversidade de situações, personagens e culturas que a literatura traz ao nosso alcance permitem uma visão abrangente (já que pontos de vistas diferenciados, em todos os aspectos, como econômico, social e cultural, exigem uma leitura disposta a "ouvir" o que o outro tem a dizer, nos fazendo praticar uma espécie de empatia e respeito pelo outro), perspectivas fundamentais para nosso desenvolvimento como seres humanos.

"[...] é possível vislumbrar que uma das formas de seduzir para o conhecimento é demonstrar as alegrias de descobrir a boa literatura, relacionando-a com o sonho, com o direito de sonhar, diminuindo, assim, o peso que o tratamento escolar, historicamente, tem dado aos textos literários e valorizando seu potencial de satisfazer às nossas necessidades humanas." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 56).

A literatura, então, mais do que ser, em parte, um reflexo da realidade e da sociedade em que foi originada, serve como um meio de humanização. Justamente por esse leque de benefícios e aprimoramento que possui – claro que não se pode esquecer que a literatura é um meio, não "transmitindo" todos esses benefícios a quem só "decodifica as palavras", sendo necessária uma leitura efetiva, um leitor que se disponha a pensar, a aprender e se reconhecer e ao mundo como produtos imperfeitos num contínuo processo de transformação/aperfeiçoamento. A literatura, por meio da leitura, possui a tênue necessidade desse contato texto-leitor-sentido para se fazer "viva", para construir e contribuir com uma realidade mais repleta de sentidos, conhecimento, empatia e respeito; além de servir como uma atividade de lazer bem-aproveitada por muitos.

"A literatura, certamente, tem grande potencial humanizador. Entretanto, é preciso considerar que a relação entre literatura e humanização não é direta. Trata-se de uma relação oblíqua, facetada, justamente porque se assenta no contato sempre único do sujeito leitor (no qual a literatura pode atuar de modo subconsciente e inconsciente, de maneira difícil de ser avaliada) com um objeto - a literatura - que, construída a partir de convenções estéticas, reconfigura (subjetivamente) a realidade empírica." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 10)

Esse mesmo ponto pode ser considerado ao se ler ou ouvir comentários de outras pessoas sobre as leituras feitas – sejam elas de obras que o ouvinte-leitor já leu ou não. Por possuírem bagagens e experiências diferenciadas, cada leitor terá uma interpretação, uma perspectiva única da obra. Isso é bem compreensível a quem já compartilhou conversas sobre livros (ou mesmos filmes, séries), como em um clube do livro ou pela leitura de resenhas e/ou ensaios. O simples fato de poder conhecer e quem sabe compreender uma perspectiva que não tenhamos tido já implica uma experiência valiosa de leitura. É uma possibilidade de expandir uma visão que poderia ter sido mais limitada; é aceitar ouvir a opinião alheia e aprender com ela.

"[...] em cada um deles, nós, leitores, podemos encontrar uma espécie de 'abrigo' contra a desumanização: um lugar (literário) hospitaleiro que fecunda a imaginação e permite pensar mais livremente." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 9)

Uma obra que permite esse tipo de experiência é Desumanização na Literatura, organizada por Massi e Trindade (2015). Este livro engloba seis ensaios com análises de obras diferentes, de ambientes por vezes diversos, cujo foco é o mesmo: a humanização e a falta dela tanto na nossa história quanto na literatura. A leitura desses ensaios nos leva a pensar sobre a humanização e o quanto esta nos é necessária; e a melhor forma de perceber sua força é pela sua ausência. Isto é, "[...] a desumanização como processo que nega às pessoas a possibilidade de desenvolver-se plenamente em todas as suas potencialidades (em seus aspectos físico, educacional, artístico, profissional e político)" (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 181). No decorrer das páginas, nos deparamos com essa situação quanto aos escravos, aos prisioneiros, aos nordestinos e às vítimas de crimes (já que suas mortes eram como o "descarte" de objetos). Cada uma em suas particularidades, motivações, culturas e épocas diferenciadas, mas todas levando ao mesmo ponto e nos fazendo questionar como a humanização é algo frágil quando a utilização de poder na sociedade está envolvida.

"Talvez esse interesse esteja relacionado à consolidação de alguns valores e consensos, a exemplo daquele que define o ser humano como dotado de consciência de si enquanto sujeito histórico, consciência da sociedade em que está inserido e das estruturas de poder que a fundamentam." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 181)

Logo no primeiro ensaio, Branqueamento e animalização: representações da desumanização do escravo, de Regina Claudia Garcia Oliveira de Sousa, já se pode ter uma ideia do que se encontrará nos ensaios seguintes, sobre o quanto isso impacta a sociedade e a forma como o poder influencia as pessoas. Nesse ensaio, há uma abordagem sobre o escravo na história e na literatura, mostrando que se precisa da desumanização para a existência da escravidão; isto é, o escravo como algo "não humano", que não pensa e não tem valores. Outro ponto abordado e que caminha junto à ideia de desumanização é o branqueamento como única forma de humanização do escravo negro, que é considerado um animal e assim retratado. Já que os "brancos" eram, então, os únicos considerados "humanos", racionais, com valores e educação, e o fato de um escravo e negro possuir alguma dessas características automaticamente o levava a se aproximar dos 'brancos'. Tudo isso sendo relacionado a obras que retratam esses ideais por meio da ficção. No caso desse ensaio: Calabar, de Agrário de Meneses; Gonzaga ou a Revolução de Minas, de Castro Alves; e Sangue Limpo, de Paulo Eiró.

"[...] o texto literário é um instrumento que possibilita a sensibilização ao denunciar, com a expressividade que lhe é peculiar, as bases de uma sociedade perversa, responsável pela desumanização em larga escala." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 201)

Embora possa soar um pouco repetitivo, convém ressaltar o quanto a literatura pode auxiliar nessa percepção da visão alheia ao lhe expor essas perspectivas – esses personagens desumanizados pelos quais simpatizamos - por meio de algo considerado lazer. E não apenas vemos isso em ficção de prosa, como também em poesias, como nos é apresentado no segundo ensaio, Poesia contra o caos: humanização em João Cabral de Melo Neto e José Craveirinha, de Maria Nilda de Carvalho Mota. Nas análises de poemas vemos ambos os lados de situações de "conflito (social)", tanto dos políticos quanto dos povos subjugados.

"Muito embora distintos, evidente está que em ambos os contextos, tão ligeiramente narrados [...], resistir nos parece imperativo, dado que, de certo modo, a humanidade tanto de quem escreve quanto das personagens descritas e de quem lê é posta à prova durante o ato de leitura. Tratam-se de textos que nos obrigam a nos posicionarmos sob pena de, ao não fazê-lo, ao não nos solidarizarmos com as vítimas das brutalidades cometidas pelos 'bandos' armados, por exemplo, nos termos de Agnes Heller (2000), reduzirmos nossa própria humanidade, afastando-nos do 'gênero humano'." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 59).

Como bem coloca a autora do ensaio, e em parte já mencionado acima, a leitura exige a nossa subjetividade para que haja sentido e, neste papel de leitor, mesmo sem querer, precisamos nos posicionar. Embora ser leitor possa soar em parte como algo passivo, nossa subjetividade, interpretação e ideologia nos posicionam a favor ou não de dada situação/personagem; não simpatizar com situações desumanizadoras nessas histórias implica (de certo modo) que, como humanos, nos falta um pouco de empatia.

"[...] Devemos, assim, estar atentos ao modo como facilmente racionalizamos o nosso 'instinto de autopreservação' que, muitas vezes, se constrói não com uma violência evidente, mas com a mera indiferença ao outro." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 105).

Já em outros ensaios do livro, vemos que não só a cultura, etnia ou classe econômica são meios de propagar a desumanização; a morte e os espaços de aprisionamento também mostram essa faceta, como as penitenciárias. Como espaços de aprisionamento, refletem a desumanização gradual do indivíduo, afastando-o cada vez mais da sociedade e dos valores que deveriam ser adquiridos para uma vida mais digna, já que a falta de liberdade e controle do tempo limita a existência, podando-a lentamente. Já quanto à morte, podemos ver isso na análise de romances policiais místico-religiosos (no qual a morte é parte essencial para o enredo). Particularmente no ensaio a respeito dos romances policiais, é preciso dizer que eu não fazia muita ideia das características do gênero; de modo que a explicação das diferenças e aspectos principais me soaram curiosas e interessantes, mesmo não sendo o meu tipo de leitura. Perceber, então, que a forma como é encarada a morte dos personagens – tanto pelo narrador/obra quanto pelo leitor – revela características de humanização, no que se refere ao respeito pelo outro, pela vida, voltando a ressaltar que a literatura, indiretamente, expõe nossas visões acerca da utilidade de cada indivíduo na sociedade e o quanto a sua falta afeta ou não o seu redor.

"[...] o discurso literário é muitas vezes um meio eficiente para retirar essas máscaras ideológicas, possibilitando ao ser humano (re)conhecer-se enquanto ser humano e assim humanizar-se" (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 190)

Por outro lado, um dos ensaios também traz a perspectiva da possibilidade de humanização em ambientes que poderiam ser julgados como propagadores da desumanização. Curiosamente, por meio da escrita. Numa das obras analisadas, nota-se que a sobrevivência do personagem põe em questão a humanização e como a ausência dela pode ser algo maior do que apenas individual. Estar ou não dentro do que se considera como humano depende da visão geral da sociedade; é a junção de inúmeros sujeitos que criam essa rede maior (a sociedade), que aduba ou poda a humanidade de suas integrantes.

"De modos diferentes, eles mostram o descompasso entre os desejos do indivíduo e os limites da sociedade. Ao tratarem de um tema em comum, o encarceramento, as duas obras configuram-se como possibilidade de mostrar o que se esconde sob o tênue véu da naturalidade." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 108).

Durante todos os seis ensaios nos deparamos com a análise de obras que retratam a desumanização, e constatamos que a literatura pode, também, funcionar como uma forma de combate, de resistência, "[...] na medida em que os relatos e retratos dos horrores configuram-se como não apenas um registro histórico dos acontecimentos, mas também como resposta a eles, como forma de protesto, de resistência à opressão, à desumanização." (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 83). Assim, pode-se dizer que a literatura passa a ser mais do que um reflexo da sociedade, ela age para e com a sociedade, um reflexo da história e uma voz que clama por ser conhecida, que exige uma atitude  mesmo que seja pequena, como a conscientização de alguns leitores. Parte disso se deve ao fato de que a literatura expõe a realidade e suas facetas por meio de um mundo organizado (no qual o caos está distante, mesmo que seja um reflexo da realidade que vivemos), já com suas argumentações e personagens/situações em ordem cronológica (na maioria das vezes), facilitando uma compreensão geral, envolvendo o leitor no decorrer das páginas.

“Sabemos que a narrativa é tanto mais eficiente na medida em que é capaz de envolver o leitor de modo intenso e total, emocionando-o e, no caso particular do fantástico, mantendo-o em suspense [...] quanto à natureza de determinado acontecimento.” (MASSI, NAKAGOME, 2015, p. 188)

Embora tragam assuntos bem conhecidos no que se refere à História, o que torna a leitura diferenciada e atrativa é justamente a sua relação com a literatura: pelo lazer e prazer de ler, temos contato com temas e narrativas impressionantes, tornando esse momento agradável em algo também construtivo para nós como seres humanos. A obra Desumanização na Literatura, uma reunião de ensaios que analisam diferentes obras (algumas mais conhecidas/recentes que outras), traz reflexões não só válidas como necessárias para pensarmos como encaramos o outro, como está o nosso respeito à vida alheia. É preciso dizer, porém, que, por serem ensaios, a leitura é um pouco mais densa e técnica, já que são análises de obras. Conhecer ou não as obras analisadas, aliás, não chega a ser necessariamente um fator necessário para a leitura. Mesmo não tendo as lido, a forma como são explanadas e analisadas faz com que essa falta não seja tão sentida – embora possa lhe fazer querer ler essas obras depois. Claro que isso implica que alguns spoilers estarão ali – quem tem problemas com eles talvez seja recomendado conhecer as obras primeiro. Por fim, vale dizer que esse livro está disponível gratuitamente no site da editora Letraria, de modo que se torna acessível a todos. ;)


MASSI, Fernanda; NAKAGOME, Patrícia Trindade (Org.). Desumanização na literatura. São Paulo: Me Parió Revolução, 2015. 280 p. 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

How much land does a man need?, de Leo Tolstoy


Faz uns dois ou três meses que comprei o box de pequenos clássicos da Penguin Books. São 80 livros entre 50 e 64 páginas com clássicos de diversas nacionalidades; inglês, japonês, russo, chinês, francês, latim, grego etc. Boa parte dos autores são bem conhecidos, outros, eu nunca havia visto o nome antes. O que considero uma boa oportunidade de conhecê-los enquanto pratico minha leitura em língua inglesa. Porque, sim, todos os livros são em inglês. E não, não sou fluente, nem chego perto disso. Meu objetivo é tentar voltar a ler utilizando o inglês como motivação (já que inclusive estou fazendo um curso para melhorar minha habilidade irrisória de conversação). A quem interesse, ler ajuda, e muito, a compreensão de um outro idioma. Mesmo que se comece com uma frase aqui, outra ali, até chegar a ler uma página inteira, um conto inteiro; o interessante é optar por um desenvolvimento gradual da dificuldade de leitura. Eu, por exemplo, comecei com mangás e frases no Instagram. É tudo uma questão de prática. Quanto ao box, devo dizer que o nível de dificuldade de leitura varia de um livro para o outro, o que já era esperado de obras de diferentes séculos/autores. 

Esse livro do Tolstoy foi a minha terceira leitura, e devo dizer que, mesmo que sejam livros pequenos, é notável o quanto ler em inglês vai ficando mais fácil a cada livro lido (mesmo que ainda não consiga ler muito sem um dicionário por perto). Do autor, eu já havia lido Anna Kariênina, no ano passado, e A morte de Ivan Ilitch. E, apesar de já ter lido alguns livros russos, tanto dele quanto de Dostoiésvki e Gógol, não consegui não ficar surpresa com o desenvolvimento desse pequeno livro, principalmente pela segunda história. O motivo é uma espécie de spoiler...

A primeira história, aliás, que dá nome ao livro, How much land does a man need? ("De quanta terra um homem precisa?", ou algo nesse estilo), não é menos interessante. A premissa é simples: o devil (demônio) ouve duas mulheres (uma da cidade e a outra do campo) conversando sobre seus maridos, problemas e felicidade, até que o marido de uma delas se intromete na conversa e diz que se tivesse terra suficiente, nem o devil poderia impedi-lo de ser feliz. Certamente, o devil decide "brincar" com esse homem. E no decorrer da história esse mesmo homem vai conquistando mais e mais terra. Porém, nunca se satisfazendo com o que já tinha, sempre almejando mais terras, que fossem mais férteis que as que ele já tinha. O que lembra aquele ditado que diz que a grama do vizinho é sempre mais verde. Aos nossos olhos, eu acrescentaria. Só que, claro, o protagonista não enxergava isso e muito menos decidia se estabelecer num canto só. A partir daí, já dá para imaginar como terminará.

"If I stopped now, after coming all this way - well, they'd call me an idiot!" (p. 20) [1]

Já a segunda história, What men live by (algo como "pelo que os homens vivem")que me surpreendeu um pouco mais (talvez por eu esperar algo diferente), é um pouco mais religiosa, abordando a questão do pecado, da compaixão e da humanidade em geral. O protagonista, um sapateiro pobre, mal consegue sustentar sua família, sequer tendo dinheiro para comprar casacos para o inverno. Após conseguir juntar certa quantia, resolve tentar comprar uma pele para se aquecerem, o que, infelizmente, não consegue. Na volta para casa, pensando no que faria para que pudessem sobreviver a outro inverno, se depara com um homem pelado escorado numa capela. Seu primeiro impulso é se afastar rapidamente. Afinal, o que um homem estaria fazendo ali, naquele frio, sem roupa? E o que ele, tão pobre, poderia fazer? Porém, depois acaba retornando e ajudando o homem, dividindo com ele o pouco que tinha de roupa e o levando para sua casa. O homem se recusa a dizer qualquer coisa sobre si mesmo, apenas dizendo seu nome, Mikhail. 

Após um desentendimento breve do casal, eles deixam o homem morar com eles, desde que ele também trabalhasse pelo seu sustento. Mikhail aprende a profissão de sapateiro em poucos dias e com o tempo eles prosperam e sua fama se espalha pela região. O tempo passa, e eles nada descobrem do homem, até que dois fatos fazem com que essa situação se altere. ~spoiler~

"Please don't be angry, Matryona, it's sinful. Don't forget that we must all die one day." (p. 33) [2]

Essa história tem um teor maior de ensinamento (o que pode não ser tão motivador), mas não deixa de ser uma leitura agradável e interessante. Justamente porque Tolstoy tem essa capacidade de, com uma linguagem um tanto simples, traçar a essência humana. De explanar a vontade humana, suas motivações, a importância que se dá a coisas desnecessárias e o quanto podemos ser cegos ao que mais nos é valioso. Seus personagens bem construídos, mesmo em histórias curtas, trazem essa ideia de verossimilhança, sendo fácil pensar que alguém assim realmente poderia existir. São leituras agradáveis e, embora não saiba se essas histórias foram traduzidas, sem dúvida vale a pena lê-las.


TOLSTOY, Leo. How much land does a man need? Translated by Ronald Wilks. UK: Penguin Books, 2015. 56 p. 

Minhas meras tentativas de tradução das citações acima:
[1] "Se eu parasse agora, depois de vir todo esse caminho - bem, eles me chamariam de idiota!"
[2] "Por favor não fique brava, Matryona, isso é pecaminoso. Não se esqueça que todos nós morreremos um dia."

quarta-feira, 13 de junho de 2018

The Old Man of the Moon, de Shen Fu


"All the thing are like spring dreams, passing with no trace." (p. 1) [1]

Não parece fazer muito sentido tecer um comentário sobre uma obra em inglês que, até onde sei, não possui tradução em português. Muito menos considerando ser essa obra em questão tão curta, nem 60 páginas, e tão, aparentemente, "sem sal". Por outro lado, talvez faça sentido deixar registrada a possibilidade de conhecer mais sobre obras que não temos acesso. Conhecemos muitas obras sem sequer lê-las, não porque não há em português, mas por mil e um outros motivos. Seja falta de tempo, seja falta de interesse pela obra. Não parece tão errado, pensando nisso, comentar em português sobre algo em inglês...

The Old Man of the Moon é exatamente um desses livros que parecem não ter graça nenhuma. Não possui ação, nenhum evento chocante, nenhuma história tão trágica ou personagens que tenham passados por inúmeras dificuldades. Essa é uma história de um homem e de sua paixão profunda por sua esposa; é também a história do casamento deles. Nessas poucas páginas, ficamos sabendo de como eles se conheceram, como era o relacionamento deles, descobrimos que eles tiveram filhos - isso na verdade achei surpreendente, porque do nada o narrador menciona dois filhos, um deles perto dos 12 ou 14 anos! - e que ela tentou arranjar uma concubina para ele. Dizer mais que isso é um spoiler de uma história tão curta.

Quanto ao título, que traduzo mais ou menos por "O velho da lua", é uma referência a um espírito apreciado por unir pessoas. O casal protagonista, que, aliás, adora conversas sobre literatura, poesia e afins, faz adorações ao tal espírito, tanto agradecendo por estarem juntos quanto por pedir para que possam estar juntos numa próxima vida. O curioso é que o autor fala da felicidade deles, mas também não deseja o mesmo para ninguém. Porque, apesar de o personagem ter sido feliz, ele também sofreu bastante (spoilers).

"People say that marriages are arranged by the 'Old Man of the Moon'", said Yun. "He has already pulled us together in this life, and in the next life we will have to depend on him too." (p. 25) [2]

No fim, parece que a mensagem é para que busquemos uma felicidade que não dependa plenamente dos outros. E embora possa parecer estranho se pensar que a história em si é sobre um casal apaixonado, faz sentido se pararmos para pensar na reflexão que o autor nos propõe. Será que tomamos responsabilidade e agimos por nossa própria felicidade? Ou será que deixamos os sentimentos nos levarem e nos arrebentar por meio de paixões com finais infelizes? "Onde" deixamos nossa felicidade? 

Pode não ser bem o que ele quis dizer (estava em inglês e é uma interpretação pessoal), mas não deixou de me fazer pensar a respeito. 

Quanto à obra, resta dizer que ela passa há séculos atrás (foi escrita em 1809), numa época em que as mulheres ainda não tinham permissão para muitas coisas do dia a dia. Não podiam fazer parte de todo dever social (como reuniões), viajar, ir aonde quisessem etc. Então ler essa obra nos dias de hoje é também uma forma de lembrar que os tempos mudam, conceitos, valores e pensamentos que parecem enraizados podem gradualmente ser alterados. Mesmo que pareça que nada mude, às vezes pode ser tão sutil que só notamos quando a mudança já percorreu quilômetros; afinal, é aquela ideia: nunca nos banhamos no mesmo rio duas vezes (Heráclito, né?).

Por fim, tenho que dizer que meu "nível" de leitura em inglês ainda não é grande coisa; tive bastante dificuldade lendo a obra, mesmo sendo curtinha e tendo, aparentemente, uma linguagem mais simples (ao menos comparado com outro livro que "tentei" ler). Não posso dizer que amei a obra, mas sem dúvida me fez refletir um bocado. Em tempos de poucas leituras, a considerei extremamente válida. 

"I could never give a complete list of all the talented writers there have been. 
Besides, which one you like depends upon which one you feel in sympathy with." (p. 10) [3]


FU, Shen. The old man of the moon. Translated by Leonard Pratt e Chiang Su-hui. UK: Penguin Classics, 2015. 60 p. 

Minhas meras tentativas de tradução das citações acima:
[1] "Todas as coisas são como sonhos primaveris, que passam sem deixar rastro."
[2] "As pessoas dizem que os casamentos são arranjados pelo 'Velho da Lua'", disse Yun. "Ele já nos juntou nesta vida, e na próxima vida nós teremos que depender dele também."
[3] "Eu nunca poderia dar uma lista completa de todos os escritores talentosos que existem. E também, de qual você vai gostar depende de com qual você sente simpatia."