quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells

AVISO: 
Este texto é um comentário sobre a obra A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells, 
a qual não recomendo a pessoas extremistas ou simplesmente religiosas demais. 
Pode ser uma leitura "marcante". Além disso, este texto pode não estar isento de spoilers.

Mero detalhe: as edições da Alfaguara são lindas. E essa marca característica na capa então... ❤
Entre o ser humano e os outros animais, a distinção pode tanto ser nítida quanto obscura. E como defini-la? Pela razão, que nem todos (às vezes) parecem possuir? Ou, mesmo considerando que todos a possuem, partindo apenas do conhecimento de mundo, que pode vir a ser pequeno, e tornar o tal ser humano tão semelhante ao animal? Depois de ler A ilha do dr. Moreau, do britânico Herbert George Wells, receio que a racionalidade, nossa arma de sobrevivência no mundo, como apontado em A máquina do tempo, outra obra de H. G. Wells, está, de certo modo, fadada a um uso comedido e, por vezes, inexplorado. Por outro lado, tem-se que ver qual a necessidade dessa racionalidade hoje em dia. E, afinal, o que ela é. Nunca deixando de lembrar que a racionalidade, a razão, vem sempre acompanhada do lado emocional do ser humano - porque mesmo a seriedade advém, de certo modo, do emocional, da capacidade de controle do indivíduo - que, se não acompanhada de uma inteligência emocional - algo que, pelo meu parco entendimento, temos muita falta disso -, acaba perdendo espaço a ações que podem ser consideradas exageradas. Não é de hoje que se busca um equilíbrio. Nisso, ainda, convém retomar a menção de Dostoiévski em Memórias do Subsolo quanto a esta questão (e desculpem-me por mencionar tanto esse livro).

"Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 41).

Particularmente, a obra do britânico terminou de um modo, a mim, surpreendente. Uma crítica, talvez, a essa separação, um apontamento surpreendente sobre algo tão atual, sobre o que nos difere dos animais e o que, afinal, importa ao ser humano. A citação abaixo mostra ao que me refiro. Isso pareceu-me remeter muito à preocupação com o outro, ao quanto estamos, de fato, vivendo e não simplesmente existindo. Muitas obras parecem falar sobre isso; e talvez porque, de fato, esta seja uma questão que percorra a mente de muitas pessoas. Sendo que isso lhe proporciona um certo peso que não pode ser simplesmente ignorado. Não é algo que possa ser lido e posto de lado; porque talvez esta ação seja justamente um possível caminho aos rostos vazios. E será que o rosto, por vezes, também não reflete um pedacinho da nossa vida interior?

“Especialmente repugnantes eram os rostos vazios e inexpressivos das pessoas nos trens e ônibus; não pareciam ser meus semelhantes, não mais que um cadáver o seria, a tal ponto que eu não me atrevia mais a pegar um transporte a menos que tivesse a certeza de estar sozinho ali.” (WELLS, 2012, p. 170).

Admito que esta questão que apresentei não esteja explícita na obra, apesar de ser possível, facilmente, de se chegar a ela pelas falas do narrador. A aparência exterior é tão presente na obra que é difícil, após o término da leitura, não pensar em toda essa relação que está ali, nas entrelinhas. Antes disso, convém explicar um pouco do enredo da obra. 

Logo ao início, sabemos que houve um acidente; o protagonista, Edward Prendick, estava a bordo do navio Lady Vain, que vem a naufragar. Ele e mais outros três conseguem escapar num bote, mas logo os outros morrem, restando apenas ele. Se até esta parte o leitor não perceber que a história será repleta de um drama curioso, não há problema, ainda há muito pela frente. Depois de uns dias à deriva, ele é resgatado pelo navio Ipecacuanha, cujo capitão, infelizmente para nosso protagonista, além de bêbado, não o recebe de bom grado. Junta-se isso, claro, a capacidade do protagonista de ter agido autoritariamente com o capitão; isso para ajudar aquele que o salvou do mar, o médico Montgomery. Com isso, ele tem de desembarcar numa estranha ilha sem nome junto de Montgomery, e alguns animais. E é a partir daqui que passamos a descobrir a respeito dos onze meses que passou "desaparecido" (lê-se, dado como morto) depois do náufrago de Lady Vain. Isto, aliás, não é spoiler, pois toda a história de Prendick é escrita por ele mesmo após escapar da ilha e voltar à sociedade, sendo divulgada, posteriormente, pelo sobrinho; eis como temos acesso à história. Isso lembra um pouco de A máquina do tempo, não? Já que em ambos toda a aventura aconteceu, o personagem volta e é então que, com ele narrando sua aventura, temos conhecimento da história.

A tal ilha, cujo título da obra se refere, tem um segredo um tanto bizarro, que aos poucos vamos descobrindo e compreendendo toda a complexidade que ali se instaura e proporciona muitas reflexões, como é bem apontado no belíssimo prefácio - que, aliás, não recomendo a leitura para quem não goste de spoilers. Como sugere o título, na ilha se encontra o dr. Moreau, um geneticista fissurado com seus estudos e experiências (não muito encantadoras). Prendick, em suas andanças por lá, vem a conhecer os habitantes da ilha, e suas impressões não são nem um pouco agradáveis.

“Parecia que os traços principais dos habitantes daquela ilha eram a feiura e o aspecto grotesco.” (WELLS, 2012, p. 58).

Apesar do aviso no início do texto, evitarei comentar sobre as aventuras de Prendick na ilha, me atendo às impressões e comentários. Voltando ao comentário interrompido anteriormente, com o qual a citação acima tem relação: é a partir da visão exterior que se chega ao ponto do questionamento acerca das diferenças entre humanos e animais. A primeira impressão, o primeiro contato, depende da aparência, e isso fica muito visível. Em seguida, observa-se os gestos, as falas, o comportamento e as ações num todo. A partir de então, traça-se uma opinião mais sólida sobre a criatura observada. Os habitantes da ilha, como se pode constatar no decorrer da obra, passam por conflitos que atingem seus instintos e o conhecimento e a convicção de terem que seguir "a Lei" (explicar mais que isso seria spoiler). Será que Wells 'imaginou' essa lei baseado em alguma religião - como parece apontar o prefácio - ou nas próprias "normas" de moral da sociedade? Fica a dúvida.

“Veio-me a estranha convicção de que, a não ser pela grosseria das linhas e o caráter grotesco das formas, o que eu tinha diante de mim era uma miniatura de todo o complexo equilíbrio da vida humana, o jogo inteiro entre o instinto, a razão e o destino, em sua forma mais simples.” (WELLS, 2012, p. 125).

Além disso, há toda uma questão de compaixão ou compreensão a respeito do outro, seja que criatura for. Algo além do sentido de vida, mais ligado ao que se considera, de fato, como respeito consigo mesmo e com quem está ao seu redor. Isto, aliás, é outro ponto abordado. Digo, os outros ao redor e o ambiente em que se está inserido pode acabar, mesmo que não por gosto ou conscientemente, por afetar-nos sem que percebamos. Essa questão, no que se refere à educação de crianças, por exemplo, é facilmente compreendida; basta lembrar aquela tão conhecida frase que diz que se aprende pelo exemplo. Ao mesmo tempo, isso se refere a toda e qualquer faixa etária, todo e qualquer ambiente. Porque o ser humano tem uma capacidade surpreendente de adaptação (mesmo que inconscientemente).

“Suponho que tudo em nossa existência acaba se situando em função da média do ambiente em que estamos.” (WELLS, 2012, p. 112).

Apesar de trazer questões densas, e um cenário um tanto quanto amedrontador, A ilha do dr. Moreau tem uma narrativa fluida e tranquila tanto quanto possível. O aviso ao início deste texto, meio que uma espécie de brincadeira com o teor da obra, foi apenas algo que pensei ao ler o livro. Afinal, as experiência do dr. Moreau são, ainda, uma espécie de "tabu" e que poderiam causar assombrosos protestos. Isso, também, por abordar todo um outro ponto, que se refere aos estudos científicos e ao cuidado com o outro; a uma reflexão sobre a dor. Por fim, quanto ao desenvolvimento da história, só parece necessário dizer que não esperem por enredo e desenvolvimento impecáveis; mas cujas reflexões e cujo teor suprem todo restante. E, pois é, a recomendo bastante.

“Formulei uma pergunta, concebi um método para buscar a resposta,
e cheguei a uma nova pergunta.” (
WELLS, 2012, p. 99).


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2009. 152 p.

WELLS, Herbert George. A ilha do dr. Moreau. Tradução, prefácio e notas de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 172 p.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

“Ao escavar nossa alma, não raro trazemos à superfície aquilo que, de outro modo, lá permaneceria sem ser notado.” (TOLSTÓI, 2013, p. 155).


A profundidade dos livros russos, a cada obra que leio, me parece mais curiosa e envolvente. Assim como em outras obras, embora haja um foco determinado, ou que assim o pareça, os autores russos parecem conseguir discorrer sobre outros temas e mesmo trazer críticas sem que, a meu ver, deixem o livro enfadonho ou fugindo do suposto fio central da obra. Se a obra tem por foco um casal, nem por isso será uma história que não aborde a profundidade disso e de outros pontos que se ligam ao tal casal; seja questão moral, econômica ou espiritual. Questão, por fim, que dão à obra um teor mais pesado, mas sempre acompanhado de uma narrativa agradável e que te faz querer chegar logo à última página - tenha a obra 100 ou 800 páginas.


Crédito: Estante de luxo. << No link há uma apresentação linda dessa edição, que recomendo darem uma olhada. 💛

Desde que li A elegância do ouriço, da Muriel Barbery, me senti quase intimada a ler Anna Kariênina, e uma curiosidade tamanha me fez comprar o livro ainda ano passado, só aguardando um momento mais calmo para lê-lo. Afinal, não é fácil ler algo de 800 páginas; ainda mais para quem, como eu, tem receio por livros grandes. Apesar disso, estava decidida a lê-lo ainda este ano; e, por coincidência ou não, esta obra está entre os livros do Projeto Viajante Literária, da Helena do Leituras e Gatices. Antes de começar a ler este livro do Tolstói, admito que não sabia muito sobre ele, o que revelou ser uma surpresa agradável. Partindo do que mencionei acima, tenho de admitir que esta obra em particular vai um pouco além, no que se refere aos personagens e questões apresentadas. Tolstói conseguiu reunir uma gama de personagens diferenciados e apresentá-los aos poucos, sem que o leitor se sinta completamente perdido, compreendo certas nuances dos personagens que os diferenciavam. O "foco" do livro, aliás, é a questão do amor, do casamento, do adultério e de como isso é encarado. Em meio a isso, o autor explora algumas questões da vida em sociedade, na cidade, e no campo; comparando uma vida simples e uma vida "tumultuada". Ambas permeadas por questões morais fortes.

Talvez, acima de tudo, para mim, o livro retrata a mudança dos personagens (e das pessoas num todo) com a passagem do tempo; a preocupação ou não com os sentimentos alheios. Além disso, a obra, como mencionei antes, aborda tantas questões, que sinto ser difícil escolher uma só para dizer o quanto esta obra é incrível e merece ser lida; ao passo que mencionar todas que eu percebi parece ser uma lista enfadonha e desagradável.

“Não há situação a que uma pessoa não possa habituar-se, sobretudo quando vê que todos à sua volta vivem assim.” (TOLSTÓI, 2013, p. 692).

Ouso dizer que há quatro personagens principais, a meu ver, sendo o Liévin (meu favorito dentre eles), a Kitty, a Anna Kariênina e o Vrónski. Cada um abarca uma parte da obra, e todos, em algum momento, se intercalam, direta ou indiretamente. Ao início da obra, porém, somos apresentados a Stiepan (irmão de Anna) e Dolly (irmã de Kitty), já adentrando a obra com um casamento aparentemente arruinado devido à traição de Stiepan. E então começa a presença do adultério na obra; e durante toda ela, por sinal, se apresenta a questão de quem, afinal, é o culpado nisso. À época, convém mencionar, havia uma forte marca da dignidade e honra familiar, principalmente aos nobres; algo que, atualmente, não se vê da mesma forma.

“Como vê, a mesmíssima coisa pode ser vista de modo trágico e tornar-se um tormento, ou pode ser vista de modo natural e até alegre.” (TOLSTÓI, 2013, p. 299).

Dividida em oito partes, a obra intercala e apresenta a vida dos personagens numa espécie de vai e vem temporal interessante, que me lembrou, de certo modo, de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. E, aos poucos, vai-se compreendendo a trama que ali se expõe e as complexidades ali envolvidas. Ao mesmo tempo, passa-se a fazer presentes certos apontamentos, observações que, embora de outra época, são hoje ainda muito atuais. Exemplo disso seria a necessidade de querer viver e se sentir vivo, ao mesmo tempo em que há uma opressão da sociedade, tanto em caráter moral quanto econômico. Uma necessidade que, ao passo em que a mente se vê ociosa, põe-se em questionamento o motivo da existência do ser humano e seu papel, de fato, no mundo. Ali, na vida. Junto a isso, põe-se em questionamento, na obra, a capacidade de amar e ser feliz. 

“Em tudo, via apenas a morte ou o avanço rumo à morte. [...] Era preciso, de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha.” (TOLSTÓI, 2013, p. 349). 

Apesar de que, neste caso, parece necessário ser comentado um pouco mais sobre os personagens e sobre o enredo, quero deixá-los à merce da leitura que se fará da obra; pois eu não o conseguiria explicar. Mesmo porque a obra, além do que mencionei, aborda o papel da mulher na sociedade, a independência do homem e a falta dela para a mulher. Temas, por sinal, que merecem abordagens mais críticas e reflexivas. Ou mesmo um espaço maior de/para debate (por alguém que o consiga fazer de fato). Faço, por fim, um comentário quanto à edição que li, da Cosac Naify; que é simplesmente linda. Embora percebi alguns espaçamentos um tanto apertadinhos e um pouquíssimos erros. Ao início de cada parte, há uma imagem de ilustração. Que deixam, por sinal, a leitura mais agradável.

Espero que eu tenha, ao menos, conseguido deixá-los um pouco curiosos pela leitura, caso ainda não a tenham feito. Embora demorada e exija certo fôlego, é prazerosa e com personagens complexos e curiosos. Este é o primeiro romance que leio do autor, e foi tão gratificante que ainda espero ler outras obras dele.


“Agora, só queria ser melhor do que fora.” (TOLSTÓI, 2013, p. 102).


TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 816 p. 8 ils.