Mostrando postagens com marcador Companhia das Letras. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Companhia das Letras. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 29 de março de 2017

O problema de não ler /&/ A violoncelista, de Michael Krüger

"Todo mundo sempre deixa algo de si para trás, porque esse algo não cabe mais em sua vida; no entanto, nem por isso, tem a sensação de ter ficado mais pobre." (KRÜGER, 2002, p. 209).

Uma onda de desânimo fez com que eu abandonasse a leitura de A violoncelista por alguns dias, até enfim voltar a tomar a obra em mãos. Não porque o livro seja ruim, não o é; até achei-o muito bom, apesar de eu ler uma boa parte sem entender direito, porque não são temas que eu entenda (história, música...). Soma-se isso ao fato de eu lê-lo aos poucos, o que contribuiu para que eu fosse esquecendo e me distanciando da obra mesmo durante a leitura. Nesse momento em que larguei o livro, por bastante tempo pensei na questão de abandonar as obras, do momento certo para ler determinado livro e, até mesmo, se há um problema em passar dias sem pegar um livro na mão. É provável que alguns pensem logo que não sou uma "verdadeira" leitora, ou leitora compulsiva, e não sou mesmo. Por sinal, antes disso, por algum tempo fiquei pensando que, na verdade, eu leio pouco mesmo agora tendo tempo até de sobra. Parecia um problema, até. Como pode alguém ficar dias sem ler e se considerar um leitor?! Pois é, o problema é justamente esse exagero. Posso ler um livro por ano e continuar sendo uma leitora; e não deveria me sentir mal por isso. Ou posso ler 50, ou 100 ou 200, como algumas pessoas inacreditavelmente conseguem; e me sentir da mesma forma que alguém que leu dez. Só que a qualidade é sempre melhor que quantidade, então se é um ou mil livros por ano, não faz diferença, desde que nesse um eu tenha feito uma boa leitura. Isso parece um pouco com uma desculpa, mas no fundo é o que importa, não é?

Sim, eu sei que seria mais certo se fosse um violoncelo, mas não tenho um. Então é meu violino mesmo que eu não sei tocar. ❤

Para tentar me animar e voltar à leitura de A violoncelista, busquei resenhas da obra, pois quem sabe um elogio à obra me servisse de impulso; infelizmente, não encontrei sequer uma resenha, seja positiva, seja negativa, seja neutra. E, até esse momento, eu estava decidida a não escrever sobre essa obra, justamente devido a esse meu distanciamento com a obra e tudo o mais. Só que não encontrar nenhuma resenha de um livro tão bem escrito é algo muito triste; e um fato que descobri ao final da minha leitura me fez decidir que, mesmo sendo vago e impreciso demais, iria expor um pouco num texto sobre essa obra que parece um pouco esquecida nas páginas de pesquisa do Google das quais me servi. Portanto, a opinião aqui é realmente imprecisa, mas serve apenas para dizer: leiam, que vale a pena.

"E era evidente também que aquele homenzinho magérrimo escolhera a mim para recontar sua vida e advertir a não amontoar tanta coisa começada e inacabada, de que não pudesse me livrar depois." (KRÜGER, 2002, p. 97).

Uma das surpresas da obra de Michael Krüger, percebida nos primeiros capítulos, é que o livro praticamente não dispõe de um diálogo sequer traçado com travessão ou aspas. Exatamente, sem as marcas habituais a que estamos acostumados; pode parecer estranho e confuso, mas serviu muito bem à narrativa. Claro, para quem já leu Saramago pode facilmente associar a ele e ter uma ideia de obra nesse estilo. Só que há uma diferença: Krüger tem uma narrativa mais "precisa" e facilmente identificável de quem está falando o quê, ao contrário do que se vê em Ensaio sobre a cegueira. Vale considerar, aliás, que há pouquíssimas falas no decorrer do livro. O que dá ao livro um tom de narração de memórias tão bonito que chega a ser admirável. (Isso não foi irônico). Esse estilo empregado é fluido e, de certo modo, possui uma elegância que me encanta. Ou pode ser porque prefiro histórias assim, cujo personagem num determinado presente relata suas memórias do passado, nem sempre em ordem cronológica.

A obra, narrada em primeira pessoa, conta a história de um compositor na faixa dos cinquenta anos que deseja produzir uma ópera baseada nos textos do russo Ossip, projeto que, aparentemente, ninguém o apoia; apesar de ter produzido algumas músicas com teor mais clássico (imagino que não esteja errado dizer assim), sua fama decorreu das trilhas que produziu para programas de TV. Seu projeto sobre Ossip, contudo, parece cada vez mais longe de ser concluído quando ele recebe a visita de Judit, a filha de sua amiga Maria. O protagonista sequer sabe quem é o pai de Judit, e possui suas dúvidas sobre possivelmente ser seu pai. Não bastando isso, a jovem parece imitar as ações de Maria, fazendo-o relembrar de seu passado, e, também, parece virar sua rotina de cabeça para baixo, retirando-o de seu sossego.

"Cada um tem seu espaço, a ele destinado. Às vezes, é necessária uma vida inteira para encontrá-lo e, ainda assim, não ocupá-lo, porque, de tanto procurar, ficou-se cego para suas qualidades." (KRÜGER, 2002, p. 161).

Interligado ao enredo, vê-se muitos apontamento sobre arte, música e mesmo um pouco sobre história. Apesar de que não tenho base suficiente para comentar a respeito, parece-me certo dizer que o escritor tem bastante conhecimento sobre o que apresenta, pois seus questionamentos são por vezes intrigantes. A isso junta-se um drama sobre o personagem cuja vida parece desbotada, mas que não o percebe e continua rememorando a vida e pensando nas suas obras produzidas.

"A arte afastara o homem da sociedade; a partir do momento em que todo mundo passara a poder tornar-se artista, a profissão se fizera almejada e o Estado ou a sociedade haviam sucumbido àquele fato, criando mais e mais institutos a conduzir a massa de aspirantes a artistas, todos autodenominando-se artistas formados depois de oito semestres de estudos, mas desprovidos da mais vaga ideia do que fosse a arte." (KRÜGER, 2002, p. 121).

A obra toda intercala, em sua narrativa encantadora, uma espécie de drama, uma confusão e diversos questionamentos que fazem com esse não seja um livro apenas sobre o reencontro com o passado e os obstáculos que fazem com que a vida aos poucos possa ser desbotada se não tomarmos cuidado. Embora alguns pontos pareçam ter ficado um pouco vago (ou talvez eu não tenha entendido bem, pode ser), de modo que me parece que poderia haver um aprofundamento ainda maior acerca de alguns personagens, não posso deixar de pensar que no estilo narrativo não havia necessidade de se explicar o que foi deixado de lado. Porque alguém pensando na sua vida não fica explicando tudo nos mínimos detalhes para si mesmo; nós, leitores da vida alheia, é que temos essa curiosidade que parece que necessita ser preenchida. Por um lado, quem sabe uma releitura e uma mente posta para funcionar consiga preencher esses espacinhos vagos. Por outro, fica o pensamento de que às vezes os autores realmente não querem nos dar todas as respostas/explicações de bandeja (um resquício de maldade, será?).

"Quanto mais mergulhava na leitura sobre os campos de concentração, mais impossível foi se fazendo para mim conceber uma música que transmitisse sequer um eco longínquo de todo aquele sentimento." (KRÜGER, 2002, p. 174).

Só ao término da leitura, nas últimas cinquenta páginas, foi que comecei a pensar que a história parecia um pouco "real" demais em alguns pontos, o que me fez recorrer ao Google e descobrir que Gyorgy, nome do narrador-protagonista, é o nome de um compositor que de fato existiu e, olha só!, até mesmo foi compositor da trilha do filme 2001 (cujo livro ainda lerei). Bom, é isso, sei que ficou um pouco vago, mas espero que tenha servido ao propósito.

"Em todas as demais horas que passo acordado,
entrego-me a comparações, o que faz com que, várias vezes ao dia,
sinta-me tentado a jogar a toalha." (KRÜGER, 2002, p. 20).

KRÜGER, Michael. A violoncelista. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 213 p.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

"O Gato Preto", de Edgar Allan Poe

Outubro terminando, mais um Halloween e eis que resolvi postar um pequeno texto que, embora não tenha muito a ver com a data, apresenta elementos considerados de "má sorte", como o gato preto. Escrevi esse texto para uma aula de Literatura, em que tínhamos que escolher algum ponto de uma das leituras do semestre e escrever sobre isso. Optei pelo conto O gato preto, e quis comentar sobre a culpa e a consciência no narrador deste conto de Edgar Allan Poe. O tema, enfim, me pareceu muito interessante, embora eu talvez não tenha escrito o tanto que a temática em si merecia. Seja por tempo ou por falta de conhecimento a respeito disso. Ah, pequeno detalhe, tem spoiler. Enfim, segue abaixo, espero que não se decepcionem. =)

Bom halloween a todos!

Fonte: Pixabay.

Aclamado escritor de mistério e precursor de recursos narrativos ligados à ficção de mistério e à ficção policial, Edgar Allan Poe escreveu, em 1843, o conto O gato preto. Além de iniciar com um tema tão abrangente e questionador como o bem e o mal, a história aborda também a questão da culpa e da consciência, demonstrados por meio dos pensamentos do narrador e de seus atos de violência. O conto narra a vida de um homem que, impulsionado pela fúria e pelo alcoolismo, pratica ações desprezíveis contra vidas alheias, como privar seu gato preto de um de seus olhos e assassinar a própria esposa. 

Demonstrando ao leitor ter sido, por longos anos, uma pessoa amável e que adorava animais, ao ponto de criar vários deles, a mudança drástica de atitude causa um questionamento e uma particularidade da existência humana, que envolve tanto a adaptação quanto à capacidade de percepção dos atos infligidos. A própria consciência do narrador o mostra que houve uma mudança em si mesmo, e que foi uma mudança radical. E isso se percebe pelos comentários sobre seu passado e presente; as atitudes e personalidade antigas e as atuais (no conto). Apesar da consciência da crueldade que estava passando a ter, o narrador-protagonista não parece forçar-se a mudar, como se apenas compreender o que fora e é fosse o bastante. A culpa, de fato, cruel e devastadora, parece inexistente, até o momento que seu primeiro “crime” seja cometido, isso é, o assassinato de seu gato preto. 

A história continua se desenrolando após o aparecimento de outro gato preto, muito semelhante ao primeiro, inclusive quanto ao olho, sendo diferenciado apenas por uma marca branca no pelo, próxima ao pescoço. A partir de então pode-se começar a notar uma nova alteração nas atitudes do narrador, se sentindo quase que claustrofóbico, assustado, com a presença do gato, ao ponto de querer se livrar do pequeno. Numa tentativa, acaba por matar a esposa, e perder o gato de vista. Esse assassinato, aparentemente perfeito – isso é, sem possibilidades de que fosse descoberto –, aparentemente não causa peso na consciência do narrador, que parece apenas se questionar da localização do gato. Ao passo em que se poderia dizer que a ausência, explícita, de culpa, poderia ser resultado de uma consciência que parece mais em conflito com a mudança do decorrer de sua vida.

A parte final do conto associa-se a um outro conto do autor, O coração delator, cujos finais se aproximam quanto a um criminoso e a descoberta de seus crimes. No caso de O gato preto, o protagonista se sente tão convicto e livre da culpa que se delata, batendo na parede que esconde o cadáver da mulher. A culpa (explícita) sede espaço ao pavor, ao medo e à angústia. Emoções que também podem ser associadas à mente culposa.

Mais que um conto narrado por um personagem movido pelas sensações e fúria, O gato preto mostra uma faceta da humanidade; a mudança do indivíduo ao longo do tempo, a influência de elementos externos (como o álcool), a consciência dos próprios atos e, também, a culpa, que por vezes aparece não como arrependimento, mas como um medo, um pavor das consequências.

POE, Edgar Allan. O gato preto (Tradução de José Paulo Paes). In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Cap. 4. p. 69-79.