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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

“Ao escavar nossa alma, não raro trazemos à superfície aquilo que, de outro modo, lá permaneceria sem ser notado.” (TOLSTÓI, 2013, p. 155).


A profundidade dos livros russos, a cada obra que leio, me parece mais curiosa e envolvente. Assim como em outras obras, embora haja um foco determinado, ou que assim o pareça, os autores russos parecem conseguir discorrer sobre outros temas e mesmo trazer críticas sem que, a meu ver, deixem o livro enfadonho ou fugindo do suposto fio central da obra. Se a obra tem por foco um casal, nem por isso será uma história que não aborde a profundidade disso e de outros pontos que se ligam ao tal casal; seja questão moral, econômica ou espiritual. Questão, por fim, que dão à obra um teor mais pesado, mas sempre acompanhado de uma narrativa agradável e que te faz querer chegar logo à última página - tenha a obra 100 ou 800 páginas.


Crédito: Estante de luxo. << No link há uma apresentação linda dessa edição, que recomendo darem uma olhada. 💛

Desde que li A elegância do ouriço, da Muriel Barbery, me senti quase intimada a ler Anna Kariênina, e uma curiosidade tamanha me fez comprar o livro ainda ano passado, só aguardando um momento mais calmo para lê-lo. Afinal, não é fácil ler algo de 800 páginas; ainda mais para quem, como eu, tem receio por livros grandes. Apesar disso, estava decidida a lê-lo ainda este ano; e, por coincidência ou não, esta obra está entre os livros do Projeto Viajante Literária, da Helena do Leituras e Gatices. Antes de começar a ler este livro do Tolstói, admito que não sabia muito sobre ele, o que revelou ser uma surpresa agradável. Partindo do que mencionei acima, tenho de admitir que esta obra em particular vai um pouco além, no que se refere aos personagens e questões apresentadas. Tolstói conseguiu reunir uma gama de personagens diferenciados e apresentá-los aos poucos, sem que o leitor se sinta completamente perdido, compreendo certas nuances dos personagens que os diferenciavam. O "foco" do livro, aliás, é a questão do amor, do casamento, do adultério e de como isso é encarado. Em meio a isso, o autor explora algumas questões da vida em sociedade, na cidade, e no campo; comparando uma vida simples e uma vida "tumultuada". Ambas permeadas por questões morais fortes.

Talvez, acima de tudo, para mim, o livro retrata a mudança dos personagens (e das pessoas num todo) com a passagem do tempo; a preocupação ou não com os sentimentos alheios. Além disso, a obra, como mencionei antes, aborda tantas questões, que sinto ser difícil escolher uma só para dizer o quanto esta obra é incrível e merece ser lida; ao passo que mencionar todas que eu percebi parece ser uma lista enfadonha e desagradável.

“Não há situação a que uma pessoa não possa habituar-se, sobretudo quando vê que todos à sua volta vivem assim.” (TOLSTÓI, 2013, p. 692).

Ouso dizer que há quatro personagens principais, a meu ver, sendo o Liévin (meu favorito dentre eles), a Kitty, a Anna Kariênina e o Vrónski. Cada um abarca uma parte da obra, e todos, em algum momento, se intercalam, direta ou indiretamente. Ao início da obra, porém, somos apresentados a Stiepan (irmão de Anna) e Dolly (irmã de Kitty), já adentrando a obra com um casamento aparentemente arruinado devido à traição de Stiepan. E então começa a presença do adultério na obra; e durante toda ela, por sinal, se apresenta a questão de quem, afinal, é o culpado nisso. À época, convém mencionar, havia uma forte marca da dignidade e honra familiar, principalmente aos nobres; algo que, atualmente, não se vê da mesma forma.

“Como vê, a mesmíssima coisa pode ser vista de modo trágico e tornar-se um tormento, ou pode ser vista de modo natural e até alegre.” (TOLSTÓI, 2013, p. 299).

Dividida em oito partes, a obra intercala e apresenta a vida dos personagens numa espécie de vai e vem temporal interessante, que me lembrou, de certo modo, de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. E, aos poucos, vai-se compreendendo a trama que ali se expõe e as complexidades ali envolvidas. Ao mesmo tempo, passa-se a fazer presentes certos apontamentos, observações que, embora de outra época, são hoje ainda muito atuais. Exemplo disso seria a necessidade de querer viver e se sentir vivo, ao mesmo tempo em que há uma opressão da sociedade, tanto em caráter moral quanto econômico. Uma necessidade que, ao passo em que a mente se vê ociosa, põe-se em questionamento o motivo da existência do ser humano e seu papel, de fato, no mundo. Ali, na vida. Junto a isso, põe-se em questionamento, na obra, a capacidade de amar e ser feliz. 

“Em tudo, via apenas a morte ou o avanço rumo à morte. [...] Era preciso, de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha.” (TOLSTÓI, 2013, p. 349). 

Apesar de que, neste caso, parece necessário ser comentado um pouco mais sobre os personagens e sobre o enredo, quero deixá-los à merce da leitura que se fará da obra; pois eu não o conseguiria explicar. Mesmo porque a obra, além do que mencionei, aborda o papel da mulher na sociedade, a independência do homem e a falta dela para a mulher. Temas, por sinal, que merecem abordagens mais críticas e reflexivas. Ou mesmo um espaço maior de/para debate (por alguém que o consiga fazer de fato). Faço, por fim, um comentário quanto à edição que li, da Cosac Naify; que é simplesmente linda. Embora percebi alguns espaçamentos um tanto apertadinhos e um pouquíssimos erros. Ao início de cada parte, há uma imagem de ilustração. Que deixam, por sinal, a leitura mais agradável.

Espero que eu tenha, ao menos, conseguido deixá-los um pouco curiosos pela leitura, caso ainda não a tenham feito. Embora demorada e exija certo fôlego, é prazerosa e com personagens complexos e curiosos. Este é o primeiro romance que leio do autor, e foi tão gratificante que ainda espero ler outras obras dele.


“Agora, só queria ser melhor do que fora.” (TOLSTÓI, 2013, p. 102).


TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 816 p. 8 ils.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

No mar, de Toine Heijmans

“Aprendi que o mar é previsível. Ainda mais previsível que a terra firme, onde se pode cruzar com todo tipo de gente e coisas que não se espera.” (HEIJMANS, 2015, p. 55).

Às vezes parece que grande maioria do que se lê hoje em dia ou é nacional ou é norte-americano. Claro que há diversos fatores para isso, mas ainda assim isso muito me soa um pouco limitador. Mesmo com o reconhecimento de grandes clássicos de outros lugares do mundo, autores de outras nacionalidades ainda não possuem tanto destaque, me parece. Ou talvez apenas eu não note isso. Mas destaque não quer dizer que não cheguem até o Brasil, com tradução para o português. Chegam, e isso é lindo (💙). É muito bom ver que existem bons escritores em todo canto do mundo, o que me faz ter vontade de ler cada vez mais essas literaturas de diferentes nacionalidades  talvez apareça algo relacionado a isso por aqui futuramente. Nisso, achei muito curioso quando reparei que um dos livros que ganhei é de Literatura Holandesa; me surpreendeu muito! A obra em questão, No Mar, foi escrita por Toine Heijmans, e recebeu uma edição maravilhosa pela Cosac Naify; capa linda, não? São poucas páginas, menos de duzentas, e a leitura é rápida. Achei a obra tão curiosa que resolvi comentar um pouco sobre ela por aqui; isso porque Heijmans conseguiu criar um personagem que vai ficando cada vez mais nítido na mente do leitor, e, conforme a leitura vai avançando, percebe-se um clima tenso e uma reviravolta mais ao final do livro que é simplesmente de nos fazer respirar fundo para não pensar demais.




Em suas 160 páginas, a obra mostra-se incrivelmente repleta de questões pertinentes, tanto que não me sinto capaz de comentar sobre todas. Dito isso, tentarei comentar, brevemente, dois pontos que aparecem: a relação do mar com o trabalho/sociedade; e a relação de pai e filha. Primeiramente, é necessário ver que a história não é linear, fazendo uma espécie de ziguezague durante o tempo em que o protagonista está em seu período "sabático". O que se sabe é que ele, protagonista e narrador, recebeu uma espécie de férias de três meses, nas quais decidiu fazer uma viagem com seu veleiro Ishmael – isso é referência a Moby Dick, livro que, aliás, estou cada vez mais curiosa para ler –, sendo que ele tinha esse imenso desejo de passar um longo tempo no mar, longe de tudo e de todos. Atrevo-me a dizer que o mar pode ser, de certo modo, seu refúgio. Além disso, nos últimos dias de sua viagem, já no seu retorno a terra firme, a sua casa, passou a ter a companhia de sua pequena filha Maria – ele explica como conseguiu que ela o acompanhasse e tudo o mais. Além dos dois, há ainda uma outra personagem importante para a história: Hagar, a mãe de Maria e esposa do protagonista – cujo nome, aliás, não é dito em boa parte da trama. A obra se intercala entre momentos passados no mar e as memórias do narrador sobre a terra firme; em que, frequentemente, ele tece comentários de que tenta ser um bom pai, numa tentativa de mostrar a Hagar que ele consegue, sim, ser uma boa pessoa. Admito que por algumas páginas até me questionei se eles eram separados e se, no caso, esses comentários fossem de que ele merecia, sim, passar tempo com sua filha; mas isso foi apenas impressão.

“‘Crianças muitas vezes são tratadas exageradamente como crianças’, asseverei a Hagar quando discutíamos sobre a viagem.” (HEIJMANS, 2015, p. 49).

Em algumas partes, principalmente no que se referia aos papéis de pais e mães – à questão de paternidade e maternidade –, não pude deixar de lembrar de muitas questões sociais atuais, que envolvem a construção histórica-social do sujeito. Obviamente, não se pode negar que as mães, de certo modo, generalizando, passam um tempo maior com os filhos nos primeiros meses, devido à amamentação e tudo o mais; mas é interessante pensar que há uma distinção muito grande entre o papel de um pai e o de uma mãe. O protagonista mostra isso e, inclusive, dá seus argumentos para tal visão, como o fato da criança estar em contato com a mãe desde antes de nascer, de ouvir seus batimentos cardíacos etc. Todos seus argumentos parecem levar a uma visão de que é "natural" essa distância que parece haver entre ele e sua filha, distância que parece não existir com a mãe, e isso parece apontar a necessidade de ele mostrar ser um bom pai e que pode fazer Maria se divertir numa viagem no veleiro com ele.



A partir das falas e dos pensamentos do narrador, pode-se ver um homem abatido pela vida no trabalho 
– que está na mesma empresa há anos e não é promovido; o que lhe dá certo amargor –, que não vê mudança, não vê um progresso; quase como se esse fato o oprimisse, exercesse uma pressão estressante sobre ele. A situação na empresa em que ele trabalha, em que os mais jovens andam recebendo destaque, parece-me uma crítica à seleção e/ou à promoção de funcionários, ao que se exige dos trabalhadores, sendo que por vezes se deveria considerar a dedicação e o tempo gasto com a empresa; mas tudo também tem que englobar o desempenho do funcionário, e, parece, contudo, que o protagonista não se fazia perceber, como se ele fosse "invisível", aguardando a oportunidade em que poderia se fazer presente, mas nunca a vendo aparecer. Logo, pode-se dizer que seu refúgio para tudo virou o mar. O narrador, então, demonstra ser um homem que, aparentemente, possui uma raiva contida, como que faltando certo amadurecimento e necessitando comprová-lo por meio desse passeio com a filha; o fracasso do passeio seria seu fracasso.

“Comecei a comparar a vida na empresa com a vida no barco. Você se concentra no que vê. No que está próximo, no que pode tocar. Fora isso, nada mais é importante. Antes que você se dê conta, o trabalho vira o centro do mundo. Se você não toma cuidado, ele se torna a razão da sua existência.” (HEIJMANS, 2015, p. 43).

É interessante ver que, apesar das frases curtas, da narrativa um tanto "simples", não é um livro "fraco"; pelo contrário, é até que denso, se reparar em alguns detalhe e começar a pensar neles. Isso seria até mais interessante se comentasse o final do livro, mas como é um spoiler meio grande, vou terminar meu comentário da obra a recomendando um bocado, e deixando uma última citação, que eu estou tentada a usar como metáfora para qualquer coisa que fuja do "padrão/normal".

“Não se pode velejar para sempre;
chega um momento em que querem você de volta à terra.” (HEIJMANS, 2015, p. 15).


HEIJMANS, Toine. No mar. Tradução de Mariângela Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 160 p.