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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Édipo em Colono, de Sófocles

Este texto (e o livro comentado também, só para constar) contém spoilers de Édipo Rei.
Estão avisados. ✌


Recentemente me deparei com alguns textos à la autoajuda, estilo século XXI, sobre quem somos ou deixamos de ser e porquê; sobre tudo que nos dizem, nos impõem e nos fazem acreditar; sobre tudo que nos afasta de nós mesmos; sobre hoje em dia ser fácil se distanciar de sua própria essência, de se perder de si mesmo, de deixar de ser. Sumir, mas continuar presente no mundo; uma casca vazia. Esvaziada aos poucos, seguindo um ritmo que parece imposto pela sociedade. Uma sociedade que atua quase como uma criatura viva, com suas regras e aromas; que se mostra, sorri e chama-nos a viver nessa farsa que estimula a um círculo vicioso de perdas. Se se deixado levar por esse sorriso, essa ilusão, o indivíduo, em sua ingenuidade e cegueira, é levado a se privar de seu maior bem: a vida. Porque o suicídio por vezes é um ato carregado de ilusão que o indivíduo assimila sem perceber – e o suicídio pode ser aquele outro também, pode ser ambos, o físico e o psíquico (por que não?). Não é fraqueza, é quase um desespero, um último lamento de alguém que não conseguiu viver além daquele ponto. Por quê? Porque o mundo, aos poucos, atuando por meio de criaturas chamadas grupos sociais, foi podando o que mais deveria importar a um ser humano: a sua própria essência. É um tema batido, clichê, sem nada que precise ser acrescentado; mesmo porque o que se necessita não é um discurso "novo", e sim um "renovado", que consiga atingir quem já alcançou sua própria cegueira. Pessoas que, mesmo sem perceber, se renderam a ilusões, a números de curtidas e likes, falsos elogios, aparências e, mesmo, a uma espera desesperada por uma pessoa que lhe dê a mão e lhe tire da apatia e do sofrimento. Pessoas que já deixaram de sonhar, desanimadas com o mundo cada vez pior que vimos a cada dia. E o livre-arbítrio, de que temos posse, acaba sendo sufocado, pelos outros e por nós mesmos.

Esse livre-arbítrio nos permite oscilar entre ações consideradas boas e más; nos permite sair cada vez mais de um estereótipo de sujeito a partir de sua classe social. Porque apesar de tudo, mesmo que não numa porcentagem admirável, as pessoas começam a se importar com o conteúdo  mesmo que por vezes em discursos vazios, mas a ideia está se propagando. O sujeito é e está aparentando se tornar complexo, não dependendo exclusivamente de sua hereditariedade e do meio em que vive. Porque esse sujeito, complexo e pensante, tendo seu livre-arbítrio e sua capacidade de raciocínio consegue refletir e pensar no que quer da vida, consegue sair de onde está, mudar-se, enfim, atuar sobre si e sobre a sociedade. Estamos num século que não é mais só a religião que move as pessoas, é uma questão bem mais moral; aceitamos nosso livre-arbítrio, usando-o ou não. Se existe um destino, as pessoas começaram a acreditar que podem mudá-lo, podem alcançar seus sonhos mais impossíveis, desde que acreditem e sigam em frente, persistam e não sejam, é claro, pisoteados demais pela "realidade". Há, porém, histórias e sociedades regidas pela crença de um destino, de um "tudo já está escrito e destinado a ser". Na história de Édipo é assim. Um destino é traçado, e nada que façam o mudará; nenhuma corrida desesperada do ser humano pode mudar o que foi proclamado pelos deuses, pelo oráculo de Apolo.

Talvez, dependendo da perspectiva, minha introdução não tenha feito o menor sentido. Assim foram para mim os textos complementares da edição que li; falavam do que se sucedera séculos após a produção de Sófocles sem mais ter uma ligação direta com sua obra. E assim como esses textos, minha introdução surgiu de um motivo, que alguns concordarão, outros, não. A fatalidade na obra de Sófocles é um elemento mais que essencial: é o que faz as engrenagens da obra se mexerem. E parece-me necessário entender isso para melhor compreender a história de Édipo. Justamente porque temos, atualmente, uma ideia (quase) totalmente oposta, que parece excluir a chamada fatalidade, mesmo porque não sabemos o que se sucederá, só temos hipóteses (que podem estar certas, ou não). Por outro lado, toda essa ideia de livre-arbítrio ou destino acaba se enredando com as ações e os sentimentos humanos. A energia que a move pode não ser mais a mesma, mas as peças, o ser humano, são as mesmas. Seja o destino, seja a sociedade, esse sujeito racional vai continuar tendo seu livre-arbítrio, meio restrito, mas tudo bem. Se em Édipo o Oráculo punha suas cordas em marionetes – que por mais que tentassem fugir estavam inevitavelmente presas por suas cordas que lhe dão vida –, hoje em dia a sociedade, e a moralidade, age semelhante – impondo padrões que ainda afetam quem não o segue. Enfim, isso tudo pode ser só uma viagem minha. E quanto a história? Pois bem...


Édipo em Colono é uma espécie de continuação de Édipo Rei, e ambas são tragédias escritas por Sófocles (que viveu por volta de 496 a.C. - 406 a.C.). Então, convém recapitular alguns acontecimentos anteriores a essa suposta continuação, iniciando por Laio, o pai de Édipo. Rei de Tebas, e casado com Jocasta, Laio descobre-se amaldiçoado, segundo os oráculos de Apolo: dizem-lhe que um filho seu o matará, tomando-lhe o trono e se casando com a própria mãe. Obviamente Laio não gosta nem um pouco disso e decide, é claro, não ter filho algum. Porém, Jocasta engravida e dá à luz um menino. Temendo o futuro, o rei manda que matem a criança. Não o fazem. Pela história que li – mas parece haver divergências nesse ponto – um servo abandona a infeliz criança perto de um campo onde pastores circulavam; faz isso, porém, "prendendo" os pés do infeliz. Salvo por esses pastores – ou será que eram viajantes? Não tenho certeza, faz tempo que li Édipo Rei (na primeira fase de Letras, lá em 2013...); de todo modo, a ideia é parecida –, o menino é entregue e adotado por um casal de outra cidade, que lhe dão o nome de Édipo, que significa "pés inchados". Já crescido, porém, sem saber que é adotado, ouve a mesma profecia que Laio ouvira, dizendo ele mataria seu pai e se casaria com a mãe. Querendo evitar seu destino – assim como Laio –, Édipo foge e acaba por se deparar, em uma encruzilhada, com a "comitiva" do rei tebano, sem saber desse detalhe. Alguns "desentendimentos" levam-no a matar o rei. Continuando seu caminho, encontra a esfinge, que assolava Tebas, e desvenda-lhe o enigma, espantando-a e salvando os tebanos. Em gratidão – olhem que povo querido – a cidade lhe oferece a mão da rainha, então viúva, Jocasta. Sem ter conhecimento do parentesco que os une, casam-se e têm alguns filhos – Polinices, Etéocles, Ismena e Antígona. Anos depois, Tebas é assolada novamente por uma praga. Em ação, o oráculo de Apolo, por intermédio de Tirésias, diz a Édipo que a paz retornará quando o assassino de Laio receber o devido castigo. Nisso, toda a verdade vem à tona, e lhe sucede o suicídio da rainha, em horror à descoberta, e a cegueira de Édipo, que, em cólera, arranca os próprios olhos em punição pelo crime cometido. De início, o próprio Édipo pede exílio de Tebas, pedido que não é atendido – naquele momento. Tendo se passado um bom tempo desses acontecimentos é que tem início Édipo em Colono, no qual o protagonista, então exilado de Tebas – sendo que não desejava mais tal exílio –, e cego, novamente segue o que lhe dizem os deuses e ruma à Atenas.

A história num todo é bem curta, o que torna realmente difícil comentá-la sem spoilers. Talvez mesmo contando seria um comentário pequeno... Enfim, de início vê-se Édipo sendo acompanhado por sua filha Antígona, que lhe presta imensa ajuda, mais do que se é esperado de uma mulher, à época. Pode-se sentir certo ressentimento de Édipo nesse sentido, isso é, que seus filhos, homens, aqueles que lhe deviam ajudar e agir de acordo com o esperado, foram aqueles que o puseram para fora de Tebas, lhe deixando na condição de mendigo sem pátria. Esse mesmo sentimento é o que o faz amaldiçoar seus filhos depois. Ademais, tendo já decorrido um bom tempo – que não se faz ideia de quanto foi – desde que fora exilado, Édipo demonstra ter passado por muita coisa, e refletido sobre isso também. Ao ponto de não mais se considerar culpado pelos crimes que cometera, pois fora tudo sem seu conhecimento. Nesse ponto, achei interessante uma nota de rodapé que menciona que um assassinato não era considerado um crime a ser punido e tudo o mais se fosse cometido em "legítima defesa". Que foi o que ocorreu com ele ao matar Laio.

"Só mais tarde, depois de minha aflição se ter já acalmado e que eu percebera que a cólera me tinha levado a infligir-me um castigo demasiado severo para meus crimes, é que a cidade me enviou violentamente para o exílio." (p. 58).

Tendo chegado ao bosque das Eumênides, Édipo pede para que consiga falar com o rei de Atenas, para pedir-lhe como que uma permissão para ali permanecer, pois se encontrava em terreno sagrado das deusas. Aliás, embora um tanto esperado – e óbvio, a depender da perspectiva –, a obra é permeada pela crença em inúmeros deuses – a conhecida mitologia grega –; em Atenas, vê-se o culto a Poseidon, por exemplo. Alguns outros deuses são mencionados, mas, a meu ver, a melhor menção à mitologia ainda aparece pelas falas sobre Hades. Já que a presença da morte é que faz a engrenagem desta obra se mover. Sabe-se, poucas páginas após o início da história, que Édipo está velho e sua morte já é prevista. Antes de conseguir falar com Teseu, rei de Atenas, ele encontra Ismena, sua outra filha, que lhe comunica a situação de Tebas e de seus dois irmãos: Eteócles, que então assumia o trono tebano, e Polinices, expulso pelo irmão e que passara a residir em Argos, preparando-se para atacar Tebas e restituir seu lugar ao trono. Vê-se, então, que a maldição sobre Tebas ainda não teve fim; dessa vez, só na posse do corpo de Édipo é que se verá novamente tranquila. De modo a fugir da fúrias dos deuses, alguém vem buscá-lo; melhor dizendo, Creonte, irmão de Jocasta.

"Que prazer se encontra em amar os que rejeitam ser amados? Se alguém te recusasse um favor desejado com instância ou um auxílio qualquer e só te concedesse quando, satisfeito o teu desejo, já nada desejavas e o favor deixara de ser favor, certamente havias de achar inútil o benefício." (p. 74).

O enredo é basicamente este. Diferentemente de Édipo Rei, em que há revelações alarmantes e grandes conflitos, incluindo-se aí principalmente as descobertas de Édipo, seus crimes de parricídio e incesto, em Édipo em Colono a história não possui cenas tão "reveladoras", o que, contudo, não a deixa ser uma peça menos viva. Parece-me até uma obra que intercala mais o sofrimento advindo dos tormentos passados, além da confirmação, mais uma vez, da impossibilidade de fugir do destino e o confronto com o outro. O "confronto" que Édipo tem com Creonte, seu ressentimento com seus filhos e a aceitação de sua própria morte, simbolizando o fim de sua vida amaldiçoada, mas não a maldição de sua família. Ponto este, por sinal, que nos faz pensar acerca da culpabilidade que ele realmente tinha ou não, à merce dos julgamentos da época. Seus crimes já estavam previstos antes mesmo de nascer, o lhe fez ser apenas uma peça, como num tabuleiro de xadrez, seguindo as ordem do jogador que lhe dispõe os movimentos a serem obedecidos. E, por outro lado, nos faz pensar sobre o destino e o livre-arbítrio. Ademais, não é difícil associar isso à ideia tão enraizada de "filho de peixe, peixinho é" e àquela ideia de antes de nascer já se pôr um padrão e um destino quase imutável a uma criança, a depender de sua família e das possibilidades que lhe são ofertadas. Sendo filho de um pai amaldiçoado, teve-a para si, sem escolhas. Ou teve: a de fugir do destino e então selá-lo. Até se pode pensar, será que não o sabendo, o teria cumprido?

"Diz-me: se um oráculo fez saber a meu pai que ele seria morto às mãos dos filhos, como poderás, com justiça, atribuir-me a culpa a mim, que do pai e da mãe não havia ainda recebido o germe da vida e não tinha, então, vindo à luz? Se depois, tendo nascido para minha desgraça, nas circunstâncias em que nasci, entrei a brigar com o pai e, sem conhecimento do que fazia nem de quem era meu adversário, o matei, que direito tens tu para censurar esta involuntária ação?" (p. 84).

A leitura da obra em si é bem rápida, pois são só cerca de 80 páginas, sem descrições de ambiente e coisas afins, já que se trata de uma peça de teatro – embora seja importante considerar que as falas são um pouco mais "densas", "complexas" e não tão fáceis de serem compreendidas. Por ser um clássico, tem uma linguagem diferenciada, que dá à peça de Sófocles certo glamour. Apesar de eu não ser fã de peças assim, visto que prefiro muito mais uma boa prosa, tenho de dizer que é uma leitura interessante, diferente, que vale a pena ser feita, caso haja interesse na história infeliz de Édipo. Aliás, a história de Édipo em Colono é considerada parte do ciclo tebano, que envolve as duas peças sobre ele que mencionei e a peça sobre Antígona, sua filha, cujo destino, também, é trágico. Pelo que é mencionado nos textos complementares, tanto Édipo quanto Antígona são personagens que aparecem em várias outras obras de outros autores – que eu ainda não li, e não pesquisei muito, então não posso comentar –, mas que são mais conhecidas pelas obras de Sófocles. Curioso, não?

"Ó filho caríssimo de Egeu, os deuses são os únicos que não envelhecem, nem jamais lhe sobrevêm a morte; mas quanto ao resto, tudo é destruído pelo tempo, a que nenhuma coisa resiste. Perece o vigor da terra e do corpo humano; morre a confiança e surge em vez dela a desconfiança. E o mesmo espírito não reina jamais entre os homens, nem entre cidade e cidade. Porque hoje a estes e mais tarde àqueles a amizade transforma-se-lhes em ódio e, depois, de novo em amizade." (p. 68).

Não sei como são as outras edições dessa obra, nem se também possuem textos complementares e afins. É possível. Bem, na edição que li, de 2005, da Martin Claret, há quatro textos complementares: um antes da obra e três após. No primeiro temos um visão geral das obras de Sófocles, incluindo uma espécie de resumo de Édipo em Colono – quem odeia spoiler então, fique avisado, está cheiinho, cheiinho; sobre a história da Antígona também. Após a obra há um sobre Sófocles, um sobre teatro e um sobre tragédia. Todos são textos particularmente interessantes e trazem visões que vem apenas a acrescentar sobre esse mundinho do teatro e de suas peças. Entretanto, cabe ressaltar alguns poréns. A começar que o primeiro texto é um pouco exaustivo, principalmente por ser todo em itálico. Umas boas vinte páginas em itálico, antes de sequer ter lido a história em si. Muito animador, por sinal. 

"Suas personagens podem ser altivas e violentas, sofrer todas as dores, mas não conhecem baixezas ou grosserias; são sempre nobres e dignas de respeito e impõem-se à nossa admiração." (p. 16).

Enfim, após todo esse itálico, chega-se ao texto (ae~ 👏). E depois temos os outros três textos: o primeiro é bem curtinho, duas-três páginas, sobre o autor. No segundo, tem-se um histórico resumido sobre o teatro, os principais autores, os acréscimos que foram surgindo com o tempo etc. Realmente é interessante, aprendi um bocado nessas poucas páginas. Porém, se pensar que não é um livro teórico nem nada, eu, ao menos, questionei-me o por que de um texto com o resumo histórico do teatro se a obra é do século V a.C. Não fez sentido ler sobre as inovações do século XIX considerando isso. Contudo, eu cheguei à minha conclusão: essa coleção não apenas possibilita o acesso a obras clássicas, como também quer que as pessoas compreendam mais a fundo sobre o contexto do que leram ou algo relacionado. De modo a não apenas ler e acabar por ali; assim acrescentando conhecimentos significativos que podem estar relacionados. Com essa conclusão achei plausível a presença desses textos, mesmo não parecendo realmente necessário. Não era meu intuito aprender sobre teatro, mas ok, valeu a pena.

Para finalizar, só dois pontos. Primeiro: fiquei realmente incomodada com a revisão. De verdade. Muitas vírgulas separando sujeito do verbo... Mesmo nos textos complementares! Bom, fazer o quê. Segundo: recomendo a leitura de Édipo Rei antes de ler Édipo em Colono, mesmo que já saibam todo o enredo. A forma como a história se desenvolve é interessante e ajuda a assimilar melhor o caráter dos personagens. Depois disso, recomendo, sim, a leitura de Édipo em Colono, por ser curtinha e interessante. Uma obra que abrange destino, crimes, mitologia – dá pra ler sem entender coisa alguma disso, ok? –, relações familiares, diálogos curiosos e sofrimento. Bastante sofrimento.

"Qual é o homem de nobres sentimentos, que não ama a sua própria felicidade?" (p. 51).

SÓFOCLES. Édipo em Colono. Tradução de Padre Dias Palmeira. São Paulo: Martin Claret, 2005. 161 p. (Coleção A obra-prima de cada autor; 196).

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O pianista, de Wladisław Szpilman

É curioso como os textos que acompanham uma obra (e não são escritos pelo autor) podem trazer um "ar" diferente e lhe fazer entrar na leitura de uma forma tão diversa. Com esses textos eu me refiro aos prefácios, às notas de tradução ou outros textos afins. Na dúvida (tão comum) de que obra ler, peguei o livro O pianista na mão e o folheei, meio aleatoriamente mesmo (e notei, infelizmente, que o meu exemplar veio com uma "falhinha" na ponta de uma das páginas; felizmente, não prejudica a leitura), até que decidi ler a primeira página e me deparei com um texto, intitulado Alguns comentários do tradutor, escrito por Tomasz Barcinski, o tradutor dessa obra, claro (e, isso é legal, diretamente do polonês!). Apesar de que só a primeira frase já havia me convencido a lê-lo, o texto num todo é muito interessante, até por abordar questões de tradução.

Essa obra é impressionante, e sem dúvidas a recomendo muitíssimo! ❤
Claro que é triste, trágico, e incomoda saber todas essas coisas que já aconteceram, mas saber uma parte do que foi é uma forma de conhecimento, de nos mostrar o outro lado das ações humanas, e, quem sabe, não repetir parte do lado negativo dessa história. (É de propósito os livros no fundo, sim. São todos sobre guerras.) 

Em 1939, teve início a Segunda Guerra Mundial, que se prolongou por alguns anos  de muita violência, ódio, preconceito, medo –, até 1945. Apesar de terem sido poucos anos, as marcas deixadas por essa guerra foram imensas, houve muita violência, muito ódio/preconceito foi propagado, milhares foram mortos – sem distinção entre criança, jovem, adulto ou idoso; homem ou mulher –, muitas famílias foram dizimadas e destruídas; aos que sobreviveram, não é fácil compreender como deve ter sido realmente sobreviver a isso, e vários relatos mostram que nem sempre é algo bom, feliz. O sofrimento pelo qual passaram e continuariam passando é grande demais para ser medido, principalmente em poucas palavras. Nisso é importante considerar que o clima tão devastador, horrendo e violento não poderia simplesmente ser "apagado" e a vida voltar ao normal; ao que parece levou muito tempo e muito mais sofrimento até que a vida de todos que foram arrasados por esse período pudesse "voltar aos eixos". Mesmo sabendo que não se pode apagar o passado – porque isso não é 1984 –, as pessoas precisam juntar o que restou de suas vidas e erguê-las ao máximo possível de uma nova rotina, até chegar a um "comum". Sobre esse período pós-guerra, aliás, é interessante ler o texto referente à obra Continente Selvagem, que foi lançada pela Zahar.

"Isso já não era brincadeira: os pisos e as paredes dos abrigos vibravam, enquanto bombas caíam por toda a cidade e certamente cada uma delas, tal como uma bala de roleta-russa, ao acertar uma casa em cujo porão abrigava-se alguém, significava a morte." (SZPILMAN, 2008, p. 24).

Nesse período, alemães expuseram uma grande variedade de violência contra os judeus, matando-os aos milhares, por vezes só para propagar um clima de tensão e de superioridade. Nunca entenderei essas pessoas. Foi um período que, posso estar enganada, uniu tanto o mau radical, que ignora totalmente o outro como ser humano, quanto o mau banal, aquele que "simplesmente" opta por não pensar*. Porque a guerra não tem um lado só, uma perspectiva apenas. E mesmo julgar alguém nesse meio não é algo fácil ou simples. Ao mesmo tempo em que havia soldados que matavam e utilizavam da violência como se estivessem fazendo algo pela própria vontade deles, acreditando estarem completamente corretos, houve também quem não concordasse com o que estava acontecendo, mas não sabia ou não tinha coragem de se rebelar e agir de modo diferente; porque a desordem, nesses casos, pode facilmente ser punida com morte. É realmente uma questão complicada... Que ficará em aberto, porque não tenho "bagagem" para ir além disso.

Na obra, vemos a visão de Szpilman, um judeu, sobre esses anos de guerra, desde a invasão da Polônia até o momento da "derrota" dos alemães. Pelo olhar de Szpilman fica fácil perceber a mudança drástica que a força e a invasão alemã causaram à Polônia, contrastando os momentos pré e pós-guerra. De uma cidade movimentada a um deserto; de uma vida confortável ao risco de morrer por inanição.  as bombas já causaram uma destruição imensa, e se engana quem ousar pensar que isso era o pior. Quando Varsóvia caiu nas mãos dos "arianos", muitos judeus foram mandados para um bairro criado especialmente para eles – isolando-os. Ergueu-se, então, muros delimitando uma parte da cidade. O apartamento de Szpilman e sua família, de certo modo por sorte, já que não precisaram procurar outro espaço para morar, ficava dentro dos limites do que foi chamado de "gueto". Isolados por esses muros e pelo patrulhamento dos alemães, o gueto acabou sitiando milhares de judeus, das mais diversas classes sociais etc. Uma "minicidade", em parte assolada pela fome, que não tinha a perspectiva de uma paz tão cedo; episódios chocantes e desumanos são presenciados. Uma reflexão de Szpilman sobre liberdade em meio a isso é completamente surpreendente e acredito ser difícil alguém terminar essa leitura sem um pingo de tristeza. Do outro lado do muro, os alemães se estabeleciam em Varsóvia e se ocupavam em manter os judeus sob extrema tensão e perigo de morte. Como o autor expõe, havia, inclusive, certas regras que, se quebradas, corria pena de morte; como o "toque de recolher", um horário no qual não podiam mais andar pelas ruas, pois, se pegos, poderiam facilmente ser mortos. Havia, inclusive, as łapanka. E frequentemente, por qualquer pequeno motivo ou por motivo algum, os alemães fuzilavam os judeus na rua. Essas ações, que demonstram uma violência e ignorância desnecessárias, principalmente se vistas pelo olhar de agora, são descritas em algumas cenas fortes, tristes e que sensibilizam muito.

Achei um pouco extenso para colocar como citação, então bati foto dessa parte, que acho importante mencionar. Faz parte da nota do tradutor (já disse que achei essa nota incrível? ❤) Considerando o contexto, aliás, faz muito sentido não ser traduzido, não é?

Umas das cenas mais tocantes do livro, aliás, é o momento em que ele se separa de sua família. Aos poucos já se sabe que isso vai acontecer, por pequenos trechinhos que Szpilman expõe, naquela sintonia de escrever sobre o passado, na tristeza de saber que aquela foi a última vez ou que seria diferente se tivessem tido mais tempo. Enfim, é um relato de um judeu na guerra, podem imaginar o que pode conter aí.

"Outras crianças tentavam sensibilizar o coração das pessoas dizendo: 'Estamos, realmente, com muita, muita fome. Não comemos há muito tempo. Deem-nos um pedaço de pão, ou, pelo menos, uma batata ou uma cebola, para que possamos sobreviver até amanhã.' 
Mas quase ninguém tinha uma mísera cebola, e mesmo se alguém tivesse, seu coração não mandaria cedê-la. A guerra havia transformado os corações em pedra." (SZPILMAN, 2008, p. 75).

Sobre o relato de Szpilman, vale ressaltar, ainda, dois pontos. Primeiro, a respeito do título. Ele era um pianista, e trabalhava numa rádio. No decorrer das páginas vamos vendo que ele realmente leva isso a sério e até parece ser um de seus impulsos para seguir em frente; em alguns momentos, principalmente nos primeiros anos da guerra, ele se preocupa com sua carreira após a guerra, e tenta proteger suas mãos para que não precise desistir do piano para sempre. Pode parecer um pouco bobo, mas é uma atitude bonita; a música para ele, parece, era mais do que notas uma atrás da outra. Um ponto sutil, mas com certo encanto, refere-se a última música que tocou antes de a rádio em que trabalhava "fechar" por causa da guerra. A mesma música, Noctune No. 20, de Chopin, fora tocada quando esse período estava terminando, o que seria o "fim" da guerra.

O segundo ponto refere-se à escrita de Szpilman, e, quanto a isso, jamais falarei melhor do que Wolf Biermann, no epílogo do livro. Portanto, segue as palavras dele:

"[...] embora este diário tivesse sido escrito 'a quente', pois surgiu quando as ruínas ainda fumegavam e ainda ardiam as cinzas da Segunda Guerra Mundial, a linguagem usada por Wladysław Szpilman é, surpreendentemente, serena. O autor descreveu tudo por que acabara de passar com um distanciamento quase melancólico. Tenho a impressão que ele ainda não havia voltado a si totalmente depois da viagem por círculos infernais e relata os fatos como se tivessem sido presenciados por outra pessoa; por alguém em quem ele se havia transformado quando a Polônia foi ocupada pelos alemães." (Wolf Biermann, no epílogo Uma ponte entre Wladyslaw Szpilman e Wilm Hosenfeld)

A obra é pequena, pode ser lida em poucos dias, mesmo com intervalos no meio, mas mostra ter um peso imenso, um pedaço de uma história que mostra muitas outras. Histórias que se intercalam, se sobrepõem, se respeitam ou se aniquilam. Pessoas que pensam, que amam e que vivem; pessoas que simplesmente seguiam. Judeus e alemães, apesar de serem definições fortes e marcadas por suas histórias, não podem ser considerados como rótulos. Porque são só isso; as pessoas, por 'n' motivos, veem mais do que há. Infelizmente, ainda é assim. É um círculo que talvez não tenha fim, só muda a intensidade.

Enfim, já não bastasse o incrível relato de Szpilman, ao final da obra somos apresentados a uma parte adicional, composta de fragmentos de cartas do alemão Wilm Hosenfeld. Sem saber a respeito dele, não é curioso ter textos de um alemão num livro de um judeu que sofreu por causa dos alemães? Pois é, é surpreendente: o conteúdo é incrível!

"Tudo leva a crer que a humanidade está condenada a fazer mais mal do que bem. O amor ao próximo é um dos maiores ideais sobre a terra." (W. H., em 26 de junho de 1942).

"Todos os seres humanos têm dentro de si maldade e instintos animais que afloram quando não são coibidos. Sim, é preciso ter os mais baixos instintos para perpetrar esses homicídios entre os judeus e os poloneses." (W.H., em 13 de agosto de 1942).

"Os mentirosos e falsários terão que desaparecer e perder o seu poder ditatorial para que a dignidade possa voltar a reinar entre os homens." (W.H., em 21 de agosto de 1942).

Por fim, e terminarei o texto com uma citação, queria mostrar que até mesmo o aspecto religioso aparece no texto de Hosenfeld. Sabem aquela questão de "por que Deus permitiu isso?"? Imaginem o quanto ela não deve ter surgido nesses momentos! E o quanto não está por trás dela, não é? Não precisam ser grandes eventos, aliás, para que ela surja, mesmo quando é algo menor e regional, uma morte isolada, ela aparece. Não sou religiosa, mas mesmo assim gostei bastante de pensar a respeito – sobre nosso livre arbítrio e o que fazemos com ele. Descobri recentemente, aliás, que um filósofo, ou algo assim, há muitos anos, veio em defesa e expôs algo que perpassa no discurso de W. Hosenfeld.

"Por que Deus permitiu esta guerra terrível com as suas incontáveis vítimas? Refiro-me aos desumanos ataques aéreos, o pavor incutido na inocente população civil, as sevícias cometidas nos campos de concentração e o assassinato de centenas de milhares de judeus. Será que Deus é culpado? Por que não intervém, por que permite que tudo isso aconteça? São perguntas que podem ser feitas, mas não podem ser respondidas. A saída mais fácil é a de tentar jogar a culpa nos outros. Deus permite a maldade porque foram os homens que a escolheram; mas agora, graças à maldade e à imperfeição humanas, hão de sentir os infortúnios que cairão sobre eles. Nada fizemos para impedir a ascensão do nazismo e traímos os nossos próprios ideais - os ideais de liberdade individual, da democracia e da escolha religiosa" (W.H., em 6 de julho de 1943).

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* Sobre isso, recomendo a leitura do texto A propósito da problemática do mau em Hannah Arendt, de Odilio Alves Aguiar. O texto está disponível neste link. Não é um texto muito fácil de ler, e eu admito não ter entendido muito, mas a leitura vale a pena para os interessados. Inclusive participei de uma aula em que discutiam esse texto e foi bem interessante. Durante o debate foi tocado bastante no mau banal e em como as pessoas, em momentos de guerra e semelhantes, são capazes de matar sem remorso etc. Enfim, vale a pena ler.

SZPILMAN, Wladisław. O pianista. Tradução de Tomasz Barcinski. 2. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008. 224 p.

quarta-feira, 29 de março de 2017

O problema de não ler /&/ A violoncelista, de Michael Krüger

"Todo mundo sempre deixa algo de si para trás, porque esse algo não cabe mais em sua vida; no entanto, nem por isso, tem a sensação de ter ficado mais pobre." (KRÜGER, 2002, p. 209).

Uma onda de desânimo fez com que eu abandonasse a leitura de A violoncelista por alguns dias, até enfim voltar a tomar a obra em mãos. Não porque o livro seja ruim, não o é; até achei-o muito bom, apesar de eu ler uma boa parte sem entender direito, porque não são temas que eu entenda (história, música...). Soma-se isso ao fato de eu lê-lo aos poucos, o que contribuiu para que eu fosse esquecendo e me distanciando da obra mesmo durante a leitura. Nesse momento em que larguei o livro, por bastante tempo pensei na questão de abandonar as obras, do momento certo para ler determinado livro e, até mesmo, se há um problema em passar dias sem pegar um livro na mão. É provável que alguns pensem logo que não sou uma "verdadeira" leitora, ou leitora compulsiva, e não sou mesmo. Por sinal, antes disso, por algum tempo fiquei pensando que, na verdade, eu leio pouco mesmo agora tendo tempo até de sobra. Parecia um problema, até. Como pode alguém ficar dias sem ler e se considerar um leitor?! Pois é, o problema é justamente esse exagero. Posso ler um livro por ano e continuar sendo uma leitora; e não deveria me sentir mal por isso. Ou posso ler 50, ou 100 ou 200, como algumas pessoas inacreditavelmente conseguem; e me sentir da mesma forma que alguém que leu dez. Só que a qualidade é sempre melhor que quantidade, então se é um ou mil livros por ano, não faz diferença, desde que nesse um eu tenha feito uma boa leitura. Isso parece um pouco com uma desculpa, mas no fundo é o que importa, não é?

Sim, eu sei que seria mais certo se fosse um violoncelo, mas não tenho um. Então é meu violino mesmo que eu não sei tocar. ❤

Para tentar me animar e voltar à leitura de A violoncelista, busquei resenhas da obra, pois quem sabe um elogio à obra me servisse de impulso; infelizmente, não encontrei sequer uma resenha, seja positiva, seja negativa, seja neutra. E, até esse momento, eu estava decidida a não escrever sobre essa obra, justamente devido a esse meu distanciamento com a obra e tudo o mais. Só que não encontrar nenhuma resenha de um livro tão bem escrito é algo muito triste; e um fato que descobri ao final da minha leitura me fez decidir que, mesmo sendo vago e impreciso demais, iria expor um pouco num texto sobre essa obra que parece um pouco esquecida nas páginas de pesquisa do Google das quais me servi. Portanto, a opinião aqui é realmente imprecisa, mas serve apenas para dizer: leiam, que vale a pena.

"E era evidente também que aquele homenzinho magérrimo escolhera a mim para recontar sua vida e advertir a não amontoar tanta coisa começada e inacabada, de que não pudesse me livrar depois." (KRÜGER, 2002, p. 97).

Uma das surpresas da obra de Michael Krüger, percebida nos primeiros capítulos, é que o livro praticamente não dispõe de um diálogo sequer traçado com travessão ou aspas. Exatamente, sem as marcas habituais a que estamos acostumados; pode parecer estranho e confuso, mas serviu muito bem à narrativa. Claro, para quem já leu Saramago pode facilmente associar a ele e ter uma ideia de obra nesse estilo. Só que há uma diferença: Krüger tem uma narrativa mais "precisa" e facilmente identificável de quem está falando o quê, ao contrário do que se vê em Ensaio sobre a cegueira. Vale considerar, aliás, que há pouquíssimas falas no decorrer do livro. O que dá ao livro um tom de narração de memórias tão bonito que chega a ser admirável. (Isso não foi irônico). Esse estilo empregado é fluido e, de certo modo, possui uma elegância que me encanta. Ou pode ser porque prefiro histórias assim, cujo personagem num determinado presente relata suas memórias do passado, nem sempre em ordem cronológica.

A obra, narrada em primeira pessoa, conta a história de um compositor na faixa dos cinquenta anos que deseja produzir uma ópera baseada nos textos do russo Ossip, projeto que, aparentemente, ninguém o apoia; apesar de ter produzido algumas músicas com teor mais clássico (imagino que não esteja errado dizer assim), sua fama decorreu das trilhas que produziu para programas de TV. Seu projeto sobre Ossip, contudo, parece cada vez mais longe de ser concluído quando ele recebe a visita de Judit, a filha de sua amiga Maria. O protagonista sequer sabe quem é o pai de Judit, e possui suas dúvidas sobre possivelmente ser seu pai. Não bastando isso, a jovem parece imitar as ações de Maria, fazendo-o relembrar de seu passado, e, também, parece virar sua rotina de cabeça para baixo, retirando-o de seu sossego.

"Cada um tem seu espaço, a ele destinado. Às vezes, é necessária uma vida inteira para encontrá-lo e, ainda assim, não ocupá-lo, porque, de tanto procurar, ficou-se cego para suas qualidades." (KRÜGER, 2002, p. 161).

Interligado ao enredo, vê-se muitos apontamento sobre arte, música e mesmo um pouco sobre história. Apesar de que não tenho base suficiente para comentar a respeito, parece-me certo dizer que o escritor tem bastante conhecimento sobre o que apresenta, pois seus questionamentos são por vezes intrigantes. A isso junta-se um drama sobre o personagem cuja vida parece desbotada, mas que não o percebe e continua rememorando a vida e pensando nas suas obras produzidas.

"A arte afastara o homem da sociedade; a partir do momento em que todo mundo passara a poder tornar-se artista, a profissão se fizera almejada e o Estado ou a sociedade haviam sucumbido àquele fato, criando mais e mais institutos a conduzir a massa de aspirantes a artistas, todos autodenominando-se artistas formados depois de oito semestres de estudos, mas desprovidos da mais vaga ideia do que fosse a arte." (KRÜGER, 2002, p. 121).

A obra toda intercala, em sua narrativa encantadora, uma espécie de drama, uma confusão e diversos questionamentos que fazem com esse não seja um livro apenas sobre o reencontro com o passado e os obstáculos que fazem com que a vida aos poucos possa ser desbotada se não tomarmos cuidado. Embora alguns pontos pareçam ter ficado um pouco vago (ou talvez eu não tenha entendido bem, pode ser), de modo que me parece que poderia haver um aprofundamento ainda maior acerca de alguns personagens, não posso deixar de pensar que no estilo narrativo não havia necessidade de se explicar o que foi deixado de lado. Porque alguém pensando na sua vida não fica explicando tudo nos mínimos detalhes para si mesmo; nós, leitores da vida alheia, é que temos essa curiosidade que parece que necessita ser preenchida. Por um lado, quem sabe uma releitura e uma mente posta para funcionar consiga preencher esses espacinhos vagos. Por outro, fica o pensamento de que às vezes os autores realmente não querem nos dar todas as respostas/explicações de bandeja (um resquício de maldade, será?).

"Quanto mais mergulhava na leitura sobre os campos de concentração, mais impossível foi se fazendo para mim conceber uma música que transmitisse sequer um eco longínquo de todo aquele sentimento." (KRÜGER, 2002, p. 174).

Só ao término da leitura, nas últimas cinquenta páginas, foi que comecei a pensar que a história parecia um pouco "real" demais em alguns pontos, o que me fez recorrer ao Google e descobrir que Gyorgy, nome do narrador-protagonista, é o nome de um compositor que de fato existiu e, olha só!, até mesmo foi compositor da trilha do filme 2001 (cujo livro ainda lerei). Bom, é isso, sei que ficou um pouco vago, mas espero que tenha servido ao propósito.

"Em todas as demais horas que passo acordado,
entrego-me a comparações, o que faz com que, várias vezes ao dia,
sinta-me tentado a jogar a toalha." (KRÜGER, 2002, p. 20).

KRÜGER, Michael. A violoncelista. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 213 p.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

“Ao escavar nossa alma, não raro trazemos à superfície aquilo que, de outro modo, lá permaneceria sem ser notado.” (TOLSTÓI, 2013, p. 155).


A profundidade dos livros russos, a cada obra que leio, me parece mais curiosa e envolvente. Assim como em outras obras, embora haja um foco determinado, ou que assim o pareça, os autores russos parecem conseguir discorrer sobre outros temas e mesmo trazer críticas sem que, a meu ver, deixem o livro enfadonho ou fugindo do suposto fio central da obra. Se a obra tem por foco um casal, nem por isso será uma história que não aborde a profundidade disso e de outros pontos que se ligam ao tal casal; seja questão moral, econômica ou espiritual. Questão, por fim, que dão à obra um teor mais pesado, mas sempre acompanhado de uma narrativa agradável e que te faz querer chegar logo à última página - tenha a obra 100 ou 800 páginas.


Crédito: Estante de luxo. << No link há uma apresentação linda dessa edição, que recomendo darem uma olhada. 💛

Desde que li A elegância do ouriço, da Muriel Barbery, me senti quase intimada a ler Anna Kariênina, e uma curiosidade tamanha me fez comprar o livro ainda ano passado, só aguardando um momento mais calmo para lê-lo. Afinal, não é fácil ler algo de 800 páginas; ainda mais para quem, como eu, tem receio por livros grandes. Apesar disso, estava decidida a lê-lo ainda este ano; e, por coincidência ou não, esta obra está entre os livros do Projeto Viajante Literária, da Helena do Leituras e Gatices. Antes de começar a ler este livro do Tolstói, admito que não sabia muito sobre ele, o que revelou ser uma surpresa agradável. Partindo do que mencionei acima, tenho de admitir que esta obra em particular vai um pouco além, no que se refere aos personagens e questões apresentadas. Tolstói conseguiu reunir uma gama de personagens diferenciados e apresentá-los aos poucos, sem que o leitor se sinta completamente perdido, compreendo certas nuances dos personagens que os diferenciavam. O "foco" do livro, aliás, é a questão do amor, do casamento, do adultério e de como isso é encarado. Em meio a isso, o autor explora algumas questões da vida em sociedade, na cidade, e no campo; comparando uma vida simples e uma vida "tumultuada". Ambas permeadas por questões morais fortes.

Talvez, acima de tudo, para mim, o livro retrata a mudança dos personagens (e das pessoas num todo) com a passagem do tempo; a preocupação ou não com os sentimentos alheios. Além disso, a obra, como mencionei antes, aborda tantas questões, que sinto ser difícil escolher uma só para dizer o quanto esta obra é incrível e merece ser lida; ao passo que mencionar todas que eu percebi parece ser uma lista enfadonha e desagradável.

“Não há situação a que uma pessoa não possa habituar-se, sobretudo quando vê que todos à sua volta vivem assim.” (TOLSTÓI, 2013, p. 692).

Ouso dizer que há quatro personagens principais, a meu ver, sendo o Liévin (meu favorito dentre eles), a Kitty, a Anna Kariênina e o Vrónski. Cada um abarca uma parte da obra, e todos, em algum momento, se intercalam, direta ou indiretamente. Ao início da obra, porém, somos apresentados a Stiepan (irmão de Anna) e Dolly (irmã de Kitty), já adentrando a obra com um casamento aparentemente arruinado devido à traição de Stiepan. E então começa a presença do adultério na obra; e durante toda ela, por sinal, se apresenta a questão de quem, afinal, é o culpado nisso. À época, convém mencionar, havia uma forte marca da dignidade e honra familiar, principalmente aos nobres; algo que, atualmente, não se vê da mesma forma.

“Como vê, a mesmíssima coisa pode ser vista de modo trágico e tornar-se um tormento, ou pode ser vista de modo natural e até alegre.” (TOLSTÓI, 2013, p. 299).

Dividida em oito partes, a obra intercala e apresenta a vida dos personagens numa espécie de vai e vem temporal interessante, que me lembrou, de certo modo, de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. E, aos poucos, vai-se compreendendo a trama que ali se expõe e as complexidades ali envolvidas. Ao mesmo tempo, passa-se a fazer presentes certos apontamentos, observações que, embora de outra época, são hoje ainda muito atuais. Exemplo disso seria a necessidade de querer viver e se sentir vivo, ao mesmo tempo em que há uma opressão da sociedade, tanto em caráter moral quanto econômico. Uma necessidade que, ao passo em que a mente se vê ociosa, põe-se em questionamento o motivo da existência do ser humano e seu papel, de fato, no mundo. Ali, na vida. Junto a isso, põe-se em questionamento, na obra, a capacidade de amar e ser feliz. 

“Em tudo, via apenas a morte ou o avanço rumo à morte. [...] Era preciso, de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha.” (TOLSTÓI, 2013, p. 349). 

Apesar de que, neste caso, parece necessário ser comentado um pouco mais sobre os personagens e sobre o enredo, quero deixá-los à merce da leitura que se fará da obra; pois eu não o conseguiria explicar. Mesmo porque a obra, além do que mencionei, aborda o papel da mulher na sociedade, a independência do homem e a falta dela para a mulher. Temas, por sinal, que merecem abordagens mais críticas e reflexivas. Ou mesmo um espaço maior de/para debate (por alguém que o consiga fazer de fato). Faço, por fim, um comentário quanto à edição que li, da Cosac Naify; que é simplesmente linda. Embora percebi alguns espaçamentos um tanto apertadinhos e um pouquíssimos erros. Ao início de cada parte, há uma imagem de ilustração. Que deixam, por sinal, a leitura mais agradável.

Espero que eu tenha, ao menos, conseguido deixá-los um pouco curiosos pela leitura, caso ainda não a tenham feito. Embora demorada e exija certo fôlego, é prazerosa e com personagens complexos e curiosos. Este é o primeiro romance que leio do autor, e foi tão gratificante que ainda espero ler outras obras dele.


“Agora, só queria ser melhor do que fora.” (TOLSTÓI, 2013, p. 102).


TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 816 p. 8 ils.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Projetos: Viajante Literária e Lendo Clássicos

Leituras e Gatices
Cada indivíduo tem uma história, de certa forma, única. Cuja base é, em parte, formada pelo ambiente e cultura em que está inserido. O que torna cada autor, de certo modo, único, não entrando aqui a "habilidade" que o autor tem com a escrita ou a "qualidade" da obra; além de considerar, por outro lado, que o autor não é o sujeito num todo, mas parte dele. Não muito longe desse raciocínio, volto a dizer o que comentei com o texto sobre No Mar, sobre ter autores incríveis em cada canto do mundo e que quero conhecer ao menos alguns deles. Talvez não por acaso que participarei de um projeto sobre essas diferentes literaturas ao redor do mundo. ✌

O Projeto Viajante literária foi criado pela Helena do Leituras e Gatices. Basicamente, ela se propõe a ler doze livros de nacionalidades diferentes ao longo do ano, um por mês. Os locais escolhidos e as respectivas obras seguem abaixo. Só troquei uns dois títulos por outros que eu já tenho na minha estante, pois estou tentando diminuir a quantidade de não lidos (que por pouco não é maior que a quantidade de lidos). Assim como a Helena, não seguirei necessariamente esta ordem. Boa parte dos autores eu já conhecia e até li algumas obras, como Murakami e Jostein Gaarder, mas cada obra pode ser uma novidade.

1. França: Madame Bovary - Gustave Flaubert
2. Ucrânia: O mestre e a margarida - Mikhail Bulgákov
3. Portugal: A desumanização - Valter Hugo Mãe
4. Rússia: Anna Kariênina - Liev Tolstói
5. Nigéria: Americanah - Chimamanda Ngozi Adichie
6. Noruega: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken - Jostein Gaarder
7. Japão: Dance Dance Dance - Haruki Murakami
8. Alemanha: A violoncelista - Michael Krüger
9. Espanha: A sombra do vento - Carlos Ruiz Zafón
10. Irlanda: Drácula - Bram Stocker
11. República Tcheca: O processo - Franz Kafka
12. Colômbia: O amor nos tempos do cólera - Gabriel Garcia Márquez

Bom, às vezes só precisamos de um empurrãozinho ou de uma força exterior para fazer algo que pretendíamos ou queríamos; como ler livros de nacionalidades diferentes ou ler mais clássicos. Aliás, é sobre isso o outro projeto que participarei: Lendo Clássicos, este sendo da Tainan, do Eu Curto Literatura. Este projeto consiste em ler doze clássicos; como a lista acima já possui um bom número deles, no decorrer do ano acrescentarei mais uns títulos.

Sinceramente, adorei os projetos, e tentarei fazer ao menos dez dessas leituras. Não deixando de mencionar, claro, que os projetos unem autores incríveis. (💙)

É, isso. Boas leituras.