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segunda-feira, 25 de junho de 2018

How much land does a man need?, de Leo Tolstoy


Faz uns dois ou três meses que comprei o box de pequenos clássicos da Penguin Books. São 80 livros entre 50 e 64 páginas com clássicos de diversas nacionalidades; inglês, japonês, russo, chinês, francês, latim, grego etc. Boa parte dos autores são bem conhecidos, outros, eu nunca havia visto o nome antes. O que considero uma boa oportunidade de conhecê-los enquanto pratico minha leitura em língua inglesa. Porque, sim, todos os livros são em inglês. E não, não sou fluente, nem chego perto disso. Meu objetivo é tentar voltar a ler utilizando o inglês como motivação (já que inclusive estou fazendo um curso para melhorar minha habilidade irrisória de conversação). A quem interesse, ler ajuda, e muito, a compreensão de um outro idioma. Mesmo que se comece com uma frase aqui, outra ali, até chegar a ler uma página inteira, um conto inteiro; o interessante é optar por um desenvolvimento gradual da dificuldade de leitura. Eu, por exemplo, comecei com mangás e frases no Instagram. É tudo uma questão de prática. Quanto ao box, devo dizer que o nível de dificuldade de leitura varia de um livro para o outro, o que já era esperado de obras de diferentes séculos/autores. 

Esse livro do Tolstoy foi a minha terceira leitura, e devo dizer que, mesmo que sejam livros pequenos, é notável o quanto ler em inglês vai ficando mais fácil a cada livro lido (mesmo que ainda não consiga ler muito sem um dicionário por perto). Do autor, eu já havia lido Anna Kariênina, no ano passado, e A morte de Ivan Ilitch. E, apesar de já ter lido alguns livros russos, tanto dele quanto de Dostoiésvki e Gógol, não consegui não ficar surpresa com o desenvolvimento desse pequeno livro, principalmente pela segunda história. O motivo é uma espécie de spoiler...

A primeira história, aliás, que dá nome ao livro, How much land does a man need? ("De quanta terra um homem precisa?", ou algo nesse estilo), não é menos interessante. A premissa é simples: o devil (demônio) ouve duas mulheres (uma da cidade e a outra do campo) conversando sobre seus maridos, problemas e felicidade, até que o marido de uma delas se intromete na conversa e diz que se tivesse terra suficiente, nem o devil poderia impedi-lo de ser feliz. Certamente, o devil decide "brincar" com esse homem. E no decorrer da história esse mesmo homem vai conquistando mais e mais terra. Porém, nunca se satisfazendo com o que já tinha, sempre almejando mais terras, que fossem mais férteis que as que ele já tinha. O que lembra aquele ditado que diz que a grama do vizinho é sempre mais verde. Aos nossos olhos, eu acrescentaria. Só que, claro, o protagonista não enxergava isso e muito menos decidia se estabelecer num canto só. A partir daí, já dá para imaginar como terminará.

"If I stopped now, after coming all this way - well, they'd call me an idiot!" (p. 20) [1]

Já a segunda história, What men live by (algo como "pelo que os homens vivem")que me surpreendeu um pouco mais (talvez por eu esperar algo diferente), é um pouco mais religiosa, abordando a questão do pecado, da compaixão e da humanidade em geral. O protagonista, um sapateiro pobre, mal consegue sustentar sua família, sequer tendo dinheiro para comprar casacos para o inverno. Após conseguir juntar certa quantia, resolve tentar comprar uma pele para se aquecerem, o que, infelizmente, não consegue. Na volta para casa, pensando no que faria para que pudessem sobreviver a outro inverno, se depara com um homem pelado escorado numa capela. Seu primeiro impulso é se afastar rapidamente. Afinal, o que um homem estaria fazendo ali, naquele frio, sem roupa? E o que ele, tão pobre, poderia fazer? Porém, depois acaba retornando e ajudando o homem, dividindo com ele o pouco que tinha de roupa e o levando para sua casa. O homem se recusa a dizer qualquer coisa sobre si mesmo, apenas dizendo seu nome, Mikhail. 

Após um desentendimento breve do casal, eles deixam o homem morar com eles, desde que ele também trabalhasse pelo seu sustento. Mikhail aprende a profissão de sapateiro em poucos dias e com o tempo eles prosperam e sua fama se espalha pela região. O tempo passa, e eles nada descobrem do homem, até que dois fatos fazem com que essa situação se altere. ~spoiler~

"Please don't be angry, Matryona, it's sinful. Don't forget that we must all die one day." (p. 33) [2]

Essa história tem um teor maior de ensinamento (o que pode não ser tão motivador), mas não deixa de ser uma leitura agradável e interessante. Justamente porque Tolstoy tem essa capacidade de, com uma linguagem um tanto simples, traçar a essência humana. De explanar a vontade humana, suas motivações, a importância que se dá a coisas desnecessárias e o quanto podemos ser cegos ao que mais nos é valioso. Seus personagens bem construídos, mesmo em histórias curtas, trazem essa ideia de verossimilhança, sendo fácil pensar que alguém assim realmente poderia existir. São leituras agradáveis e, embora não saiba se essas histórias foram traduzidas, sem dúvida vale a pena lê-las.


TOLSTOY, Leo. How much land does a man need? Translated by Ronald Wilks. UK: Penguin Books, 2015. 56 p. 

Minhas meras tentativas de tradução das citações acima:
[1] "Se eu parasse agora, depois de vir todo esse caminho - bem, eles me chamariam de idiota!"
[2] "Por favor não fique brava, Matryona, isso é pecaminoso. Não se esqueça que todos nós morreremos um dia."

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Édipo em Colono, de Sófocles

Este texto (e o livro comentado também, só para constar) contém spoilers de Édipo Rei.
Estão avisados. ✌


Recentemente me deparei com alguns textos à la autoajuda, estilo século XXI, sobre quem somos ou deixamos de ser e porquê; sobre tudo que nos dizem, nos impõem e nos fazem acreditar; sobre tudo que nos afasta de nós mesmos; sobre hoje em dia ser fácil se distanciar de sua própria essência, de se perder de si mesmo, de deixar de ser. Sumir, mas continuar presente no mundo; uma casca vazia. Esvaziada aos poucos, seguindo um ritmo que parece imposto pela sociedade. Uma sociedade que atua quase como uma criatura viva, com suas regras e aromas; que se mostra, sorri e chama-nos a viver nessa farsa que estimula a um círculo vicioso de perdas. Se se deixado levar por esse sorriso, essa ilusão, o indivíduo, em sua ingenuidade e cegueira, é levado a se privar de seu maior bem: a vida. Porque o suicídio por vezes é um ato carregado de ilusão que o indivíduo assimila sem perceber – e o suicídio pode ser aquele outro também, pode ser ambos, o físico e o psíquico (por que não?). Não é fraqueza, é quase um desespero, um último lamento de alguém que não conseguiu viver além daquele ponto. Por quê? Porque o mundo, aos poucos, atuando por meio de criaturas chamadas grupos sociais, foi podando o que mais deveria importar a um ser humano: a sua própria essência. É um tema batido, clichê, sem nada que precise ser acrescentado; mesmo porque o que se necessita não é um discurso "novo", e sim um "renovado", que consiga atingir quem já alcançou sua própria cegueira. Pessoas que, mesmo sem perceber, se renderam a ilusões, a números de curtidas e likes, falsos elogios, aparências e, mesmo, a uma espera desesperada por uma pessoa que lhe dê a mão e lhe tire da apatia e do sofrimento. Pessoas que já deixaram de sonhar, desanimadas com o mundo cada vez pior que vimos a cada dia. E o livre-arbítrio, de que temos posse, acaba sendo sufocado, pelos outros e por nós mesmos.

Esse livre-arbítrio nos permite oscilar entre ações consideradas boas e más; nos permite sair cada vez mais de um estereótipo de sujeito a partir de sua classe social. Porque apesar de tudo, mesmo que não numa porcentagem admirável, as pessoas começam a se importar com o conteúdo  mesmo que por vezes em discursos vazios, mas a ideia está se propagando. O sujeito é e está aparentando se tornar complexo, não dependendo exclusivamente de sua hereditariedade e do meio em que vive. Porque esse sujeito, complexo e pensante, tendo seu livre-arbítrio e sua capacidade de raciocínio consegue refletir e pensar no que quer da vida, consegue sair de onde está, mudar-se, enfim, atuar sobre si e sobre a sociedade. Estamos num século que não é mais só a religião que move as pessoas, é uma questão bem mais moral; aceitamos nosso livre-arbítrio, usando-o ou não. Se existe um destino, as pessoas começaram a acreditar que podem mudá-lo, podem alcançar seus sonhos mais impossíveis, desde que acreditem e sigam em frente, persistam e não sejam, é claro, pisoteados demais pela "realidade". Há, porém, histórias e sociedades regidas pela crença de um destino, de um "tudo já está escrito e destinado a ser". Na história de Édipo é assim. Um destino é traçado, e nada que façam o mudará; nenhuma corrida desesperada do ser humano pode mudar o que foi proclamado pelos deuses, pelo oráculo de Apolo.

Talvez, dependendo da perspectiva, minha introdução não tenha feito o menor sentido. Assim foram para mim os textos complementares da edição que li; falavam do que se sucedera séculos após a produção de Sófocles sem mais ter uma ligação direta com sua obra. E assim como esses textos, minha introdução surgiu de um motivo, que alguns concordarão, outros, não. A fatalidade na obra de Sófocles é um elemento mais que essencial: é o que faz as engrenagens da obra se mexerem. E parece-me necessário entender isso para melhor compreender a história de Édipo. Justamente porque temos, atualmente, uma ideia (quase) totalmente oposta, que parece excluir a chamada fatalidade, mesmo porque não sabemos o que se sucederá, só temos hipóteses (que podem estar certas, ou não). Por outro lado, toda essa ideia de livre-arbítrio ou destino acaba se enredando com as ações e os sentimentos humanos. A energia que a move pode não ser mais a mesma, mas as peças, o ser humano, são as mesmas. Seja o destino, seja a sociedade, esse sujeito racional vai continuar tendo seu livre-arbítrio, meio restrito, mas tudo bem. Se em Édipo o Oráculo punha suas cordas em marionetes – que por mais que tentassem fugir estavam inevitavelmente presas por suas cordas que lhe dão vida –, hoje em dia a sociedade, e a moralidade, age semelhante – impondo padrões que ainda afetam quem não o segue. Enfim, isso tudo pode ser só uma viagem minha. E quanto a história? Pois bem...


Édipo em Colono é uma espécie de continuação de Édipo Rei, e ambas são tragédias escritas por Sófocles (que viveu por volta de 496 a.C. - 406 a.C.). Então, convém recapitular alguns acontecimentos anteriores a essa suposta continuação, iniciando por Laio, o pai de Édipo. Rei de Tebas, e casado com Jocasta, Laio descobre-se amaldiçoado, segundo os oráculos de Apolo: dizem-lhe que um filho seu o matará, tomando-lhe o trono e se casando com a própria mãe. Obviamente Laio não gosta nem um pouco disso e decide, é claro, não ter filho algum. Porém, Jocasta engravida e dá à luz um menino. Temendo o futuro, o rei manda que matem a criança. Não o fazem. Pela história que li – mas parece haver divergências nesse ponto – um servo abandona a infeliz criança perto de um campo onde pastores circulavam; faz isso, porém, "prendendo" os pés do infeliz. Salvo por esses pastores – ou será que eram viajantes? Não tenho certeza, faz tempo que li Édipo Rei (na primeira fase de Letras, lá em 2013...); de todo modo, a ideia é parecida –, o menino é entregue e adotado por um casal de outra cidade, que lhe dão o nome de Édipo, que significa "pés inchados". Já crescido, porém, sem saber que é adotado, ouve a mesma profecia que Laio ouvira, dizendo ele mataria seu pai e se casaria com a mãe. Querendo evitar seu destino – assim como Laio –, Édipo foge e acaba por se deparar, em uma encruzilhada, com a "comitiva" do rei tebano, sem saber desse detalhe. Alguns "desentendimentos" levam-no a matar o rei. Continuando seu caminho, encontra a esfinge, que assolava Tebas, e desvenda-lhe o enigma, espantando-a e salvando os tebanos. Em gratidão – olhem que povo querido – a cidade lhe oferece a mão da rainha, então viúva, Jocasta. Sem ter conhecimento do parentesco que os une, casam-se e têm alguns filhos – Polinices, Etéocles, Ismena e Antígona. Anos depois, Tebas é assolada novamente por uma praga. Em ação, o oráculo de Apolo, por intermédio de Tirésias, diz a Édipo que a paz retornará quando o assassino de Laio receber o devido castigo. Nisso, toda a verdade vem à tona, e lhe sucede o suicídio da rainha, em horror à descoberta, e a cegueira de Édipo, que, em cólera, arranca os próprios olhos em punição pelo crime cometido. De início, o próprio Édipo pede exílio de Tebas, pedido que não é atendido – naquele momento. Tendo se passado um bom tempo desses acontecimentos é que tem início Édipo em Colono, no qual o protagonista, então exilado de Tebas – sendo que não desejava mais tal exílio –, e cego, novamente segue o que lhe dizem os deuses e ruma à Atenas.

A história num todo é bem curta, o que torna realmente difícil comentá-la sem spoilers. Talvez mesmo contando seria um comentário pequeno... Enfim, de início vê-se Édipo sendo acompanhado por sua filha Antígona, que lhe presta imensa ajuda, mais do que se é esperado de uma mulher, à época. Pode-se sentir certo ressentimento de Édipo nesse sentido, isso é, que seus filhos, homens, aqueles que lhe deviam ajudar e agir de acordo com o esperado, foram aqueles que o puseram para fora de Tebas, lhe deixando na condição de mendigo sem pátria. Esse mesmo sentimento é o que o faz amaldiçoar seus filhos depois. Ademais, tendo já decorrido um bom tempo – que não se faz ideia de quanto foi – desde que fora exilado, Édipo demonstra ter passado por muita coisa, e refletido sobre isso também. Ao ponto de não mais se considerar culpado pelos crimes que cometera, pois fora tudo sem seu conhecimento. Nesse ponto, achei interessante uma nota de rodapé que menciona que um assassinato não era considerado um crime a ser punido e tudo o mais se fosse cometido em "legítima defesa". Que foi o que ocorreu com ele ao matar Laio.

"Só mais tarde, depois de minha aflição se ter já acalmado e que eu percebera que a cólera me tinha levado a infligir-me um castigo demasiado severo para meus crimes, é que a cidade me enviou violentamente para o exílio." (p. 58).

Tendo chegado ao bosque das Eumênides, Édipo pede para que consiga falar com o rei de Atenas, para pedir-lhe como que uma permissão para ali permanecer, pois se encontrava em terreno sagrado das deusas. Aliás, embora um tanto esperado – e óbvio, a depender da perspectiva –, a obra é permeada pela crença em inúmeros deuses – a conhecida mitologia grega –; em Atenas, vê-se o culto a Poseidon, por exemplo. Alguns outros deuses são mencionados, mas, a meu ver, a melhor menção à mitologia ainda aparece pelas falas sobre Hades. Já que a presença da morte é que faz a engrenagem desta obra se mover. Sabe-se, poucas páginas após o início da história, que Édipo está velho e sua morte já é prevista. Antes de conseguir falar com Teseu, rei de Atenas, ele encontra Ismena, sua outra filha, que lhe comunica a situação de Tebas e de seus dois irmãos: Eteócles, que então assumia o trono tebano, e Polinices, expulso pelo irmão e que passara a residir em Argos, preparando-se para atacar Tebas e restituir seu lugar ao trono. Vê-se, então, que a maldição sobre Tebas ainda não teve fim; dessa vez, só na posse do corpo de Édipo é que se verá novamente tranquila. De modo a fugir da fúrias dos deuses, alguém vem buscá-lo; melhor dizendo, Creonte, irmão de Jocasta.

"Que prazer se encontra em amar os que rejeitam ser amados? Se alguém te recusasse um favor desejado com instância ou um auxílio qualquer e só te concedesse quando, satisfeito o teu desejo, já nada desejavas e o favor deixara de ser favor, certamente havias de achar inútil o benefício." (p. 74).

O enredo é basicamente este. Diferentemente de Édipo Rei, em que há revelações alarmantes e grandes conflitos, incluindo-se aí principalmente as descobertas de Édipo, seus crimes de parricídio e incesto, em Édipo em Colono a história não possui cenas tão "reveladoras", o que, contudo, não a deixa ser uma peça menos viva. Parece-me até uma obra que intercala mais o sofrimento advindo dos tormentos passados, além da confirmação, mais uma vez, da impossibilidade de fugir do destino e o confronto com o outro. O "confronto" que Édipo tem com Creonte, seu ressentimento com seus filhos e a aceitação de sua própria morte, simbolizando o fim de sua vida amaldiçoada, mas não a maldição de sua família. Ponto este, por sinal, que nos faz pensar acerca da culpabilidade que ele realmente tinha ou não, à merce dos julgamentos da época. Seus crimes já estavam previstos antes mesmo de nascer, o lhe fez ser apenas uma peça, como num tabuleiro de xadrez, seguindo as ordem do jogador que lhe dispõe os movimentos a serem obedecidos. E, por outro lado, nos faz pensar sobre o destino e o livre-arbítrio. Ademais, não é difícil associar isso à ideia tão enraizada de "filho de peixe, peixinho é" e àquela ideia de antes de nascer já se pôr um padrão e um destino quase imutável a uma criança, a depender de sua família e das possibilidades que lhe são ofertadas. Sendo filho de um pai amaldiçoado, teve-a para si, sem escolhas. Ou teve: a de fugir do destino e então selá-lo. Até se pode pensar, será que não o sabendo, o teria cumprido?

"Diz-me: se um oráculo fez saber a meu pai que ele seria morto às mãos dos filhos, como poderás, com justiça, atribuir-me a culpa a mim, que do pai e da mãe não havia ainda recebido o germe da vida e não tinha, então, vindo à luz? Se depois, tendo nascido para minha desgraça, nas circunstâncias em que nasci, entrei a brigar com o pai e, sem conhecimento do que fazia nem de quem era meu adversário, o matei, que direito tens tu para censurar esta involuntária ação?" (p. 84).

A leitura da obra em si é bem rápida, pois são só cerca de 80 páginas, sem descrições de ambiente e coisas afins, já que se trata de uma peça de teatro – embora seja importante considerar que as falas são um pouco mais "densas", "complexas" e não tão fáceis de serem compreendidas. Por ser um clássico, tem uma linguagem diferenciada, que dá à peça de Sófocles certo glamour. Apesar de eu não ser fã de peças assim, visto que prefiro muito mais uma boa prosa, tenho de dizer que é uma leitura interessante, diferente, que vale a pena ser feita, caso haja interesse na história infeliz de Édipo. Aliás, a história de Édipo em Colono é considerada parte do ciclo tebano, que envolve as duas peças sobre ele que mencionei e a peça sobre Antígona, sua filha, cujo destino, também, é trágico. Pelo que é mencionado nos textos complementares, tanto Édipo quanto Antígona são personagens que aparecem em várias outras obras de outros autores – que eu ainda não li, e não pesquisei muito, então não posso comentar –, mas que são mais conhecidas pelas obras de Sófocles. Curioso, não?

"Ó filho caríssimo de Egeu, os deuses são os únicos que não envelhecem, nem jamais lhe sobrevêm a morte; mas quanto ao resto, tudo é destruído pelo tempo, a que nenhuma coisa resiste. Perece o vigor da terra e do corpo humano; morre a confiança e surge em vez dela a desconfiança. E o mesmo espírito não reina jamais entre os homens, nem entre cidade e cidade. Porque hoje a estes e mais tarde àqueles a amizade transforma-se-lhes em ódio e, depois, de novo em amizade." (p. 68).

Não sei como são as outras edições dessa obra, nem se também possuem textos complementares e afins. É possível. Bem, na edição que li, de 2005, da Martin Claret, há quatro textos complementares: um antes da obra e três após. No primeiro temos um visão geral das obras de Sófocles, incluindo uma espécie de resumo de Édipo em Colono – quem odeia spoiler então, fique avisado, está cheiinho, cheiinho; sobre a história da Antígona também. Após a obra há um sobre Sófocles, um sobre teatro e um sobre tragédia. Todos são textos particularmente interessantes e trazem visões que vem apenas a acrescentar sobre esse mundinho do teatro e de suas peças. Entretanto, cabe ressaltar alguns poréns. A começar que o primeiro texto é um pouco exaustivo, principalmente por ser todo em itálico. Umas boas vinte páginas em itálico, antes de sequer ter lido a história em si. Muito animador, por sinal. 

"Suas personagens podem ser altivas e violentas, sofrer todas as dores, mas não conhecem baixezas ou grosserias; são sempre nobres e dignas de respeito e impõem-se à nossa admiração." (p. 16).

Enfim, após todo esse itálico, chega-se ao texto (ae~ 👏). E depois temos os outros três textos: o primeiro é bem curtinho, duas-três páginas, sobre o autor. No segundo, tem-se um histórico resumido sobre o teatro, os principais autores, os acréscimos que foram surgindo com o tempo etc. Realmente é interessante, aprendi um bocado nessas poucas páginas. Porém, se pensar que não é um livro teórico nem nada, eu, ao menos, questionei-me o por que de um texto com o resumo histórico do teatro se a obra é do século V a.C. Não fez sentido ler sobre as inovações do século XIX considerando isso. Contudo, eu cheguei à minha conclusão: essa coleção não apenas possibilita o acesso a obras clássicas, como também quer que as pessoas compreendam mais a fundo sobre o contexto do que leram ou algo relacionado. De modo a não apenas ler e acabar por ali; assim acrescentando conhecimentos significativos que podem estar relacionados. Com essa conclusão achei plausível a presença desses textos, mesmo não parecendo realmente necessário. Não era meu intuito aprender sobre teatro, mas ok, valeu a pena.

Para finalizar, só dois pontos. Primeiro: fiquei realmente incomodada com a revisão. De verdade. Muitas vírgulas separando sujeito do verbo... Mesmo nos textos complementares! Bom, fazer o quê. Segundo: recomendo a leitura de Édipo Rei antes de ler Édipo em Colono, mesmo que já saibam todo o enredo. A forma como a história se desenvolve é interessante e ajuda a assimilar melhor o caráter dos personagens. Depois disso, recomendo, sim, a leitura de Édipo em Colono, por ser curtinha e interessante. Uma obra que abrange destino, crimes, mitologia – dá pra ler sem entender coisa alguma disso, ok? –, relações familiares, diálogos curiosos e sofrimento. Bastante sofrimento.

"Qual é o homem de nobres sentimentos, que não ama a sua própria felicidade?" (p. 51).

SÓFOCLES. Édipo em Colono. Tradução de Padre Dias Palmeira. São Paulo: Martin Claret, 2005. 161 p. (Coleção A obra-prima de cada autor; 196).

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Lucíola, de José de Alencar

Entre clássicos e contemporâneos, parece haver uma distinção um tanto grande, inclusive quando se trata de escolha de obras para o trabalho em sala de aula ou leituras para vestibulares – para estas, inclusive, já existe inúmeros textos abordando os pontos principais da obra, seu contexto histórico, perguntas e respostas de vestibulares já passados e até edições de livros que acompanham, ao final, algumas destas questões, além de textos complementares sobre autor e obra, e até guias de leitura para serem usados em sala de aula. Algumas dessas obras clássicas, conhecidas principalmente por caírem como conteúdo de vestibular, às vezes se propagam e exigem uma certa leitura obrigatória; sendo este um dos fatos pelos quais os estudantes procuram cada vez mais esses textos de apoio que dizem praticamente tudo sobre a obra. Apesar de alguns pontos negativos, não se pode negar que essa leitura obrigatória amplia o alcance da obra e propicia cada vez mais o contato com a leitura. Tanto se diz e se fala, que a obra quase tem uma análise completa pelos inúmeros sites da internet. Seja sobre os aspectos principais, seja sobre a leitura em si. Acaba que comentar esses textos se torna uma tarefa complicada; porque muito (ou quase tudo) já foi dito, e o que não foi é muito provável que seja algo muito específico ou referente a uma experiência de leitura – que envolve mais o leitor do que a obra em si. A mim, isso soa como uma pequena barreira, porque obras assim, clássicas, principalmente se são nacionais e bem-conhecidas, de tão comentadas, parecem que não necessitam de mais um texto repleto dos mesmos pontos de qualquer outro, além de que minha visão limitada nada tem a acrescentar. Principalmente se leio a obra por prazer, distração, e não estudo.

Partindo disso, porém, acabo por cair num beco sem saída, pois todas as obras – ou quase todas – são bastante lidas e comentadas, mesmo as que acabaram de ser lançadas. O que faz com que, nessa linha de pensamento, não faria sentido eu escrever sobre qualquer obra que fosse. Um tanto dramático, talvez? É possível. E ao mesmo tempo pode ter uma outra linha de pensamento, em que "não se está nem aí", que simplesmente se escreve um texto, sem nada a acrescentar e o joga por aí; alguém perderá tempo lendo. Não há certo ou errado. Até acho que já comentei aqui a respeito disso, porque cada vez mais parece que discorrer sobre uma obra se torna sem sentido, se, para a pessoa que escreve, não houver um outro motivo ali incluído. Digo, às vezes só me sinto satisfeita se coloco para fora o que penso de uma leitura que concluí; e esse é um dos meus motivos para escrever. Outro motivo meu é que não quero perder a prática da escrita, porque sei que ela é, mais do que talento ou qualquer coisa que possam dizer, uma questão de emoção e prática. Também considero nisso algo que aprendi na graduação: para se ensinar bem alguém a ler, precisa-se ler. O mesmo também pode estar ligado à escrita. Não que seja obrigatório, mas conhecer o processo na própria prática te permite um conhecimento que livros teóricos podem não te dar nunca. Enfim, cada pessoa tem seu motivo. Mesmo que o texto escrito só venha a se tornar mais um grão numa praia de textos.

Isto foi uma espécie de desabafo, talvez. Bem, junto a isso, e resolvida a levar a cabo as propostas que me impus com este blog (que tem ênfase nos livros clássicos), eis que resolvi escrever meu texto com minha visão limitada de Lucíola – apesar de soar repetitivo, não quero deixá-lo incompleto para quem ainda não conheça a obra –, e dizer o motivo pelo qual eu recomendo a obra, mas não a edição que eu li. Primeiramente, como cheguei a tal edição que li: devido às disciplinas de Literatura Brasileira da faculdade, já havia ouvido falar muito de José de Alencar (1829-1877) – apesar de eu sempre confundir o nome –, e uma colega – nesse momento infelizmente não lembro exatamente quem, já faz um tempo...  me disse que havia adorado Lucíola. A isso somou-se o fato de que recentemente comentaram essa obra comigo; bom, por que não ler, então, já que eu estava realmente querendo um livro pequeno? Pesquisando a obra online cismei com a edição de capa vermelha da Martin Claret; comprei-a. Infelizmente, só quando fui ler é que reparei nas margens pequenas. 💦 Um pequeno empecilho que me faz não recomendar essa linda edição; porque a tal margem fez com que eu precisasse "forçar" um pouco o livro para poder lê-lo e eis o que aconteceu com a capa:

Essa "linha" esbranquiçada do lado esquerdo do livro se formou porque eu talvez ficasse abrindo demais o livro; mas ou eu fazia isso ou teria dificuldades para ler. *sigh*
Essa é a margem que me incomodou um bocado. Geralmente não se precisa abrir muito para poder ler, mas se observar bem, sem "esticar" o livro, mal dá para ler. O lado direito está mais direitinho, o problema de fato é com esse esquerdo... 💧 

Bem, a obra é narrada em primeira pessoa por Paulo (olha só, quase meu xará!), um homem que, ao que sabemos, escreve cartas a uma senhora, e a história que lhe conta resulta em 21 capítulos – imagino que cada capítulo pudesse ser uma das cartas que ela diz ter recebido; mas, não tenho certeza. É esta senhora que reúne tal texto e lhe põe um título, Lucíola, justificando-o como um nome de inseto, que mesmo em meio a uma obscuridade total consegue iluminar-se. Este nome, como ela logo explica, parece sintetizar a essência da mulher que ele lhe retrata. A narrativa de Paulo, por sinal, surge no intuito de explicar à senhora o porque, em seu discurso, dispunha-se a ter tanta indulgência, clemência, com pessoas infelizes que são mal vistas pela sociedade; e acaba por lhe descrever "um perfil de mulher" (p. 23), que foi, para ele, uma grande marca e, também, certa influência. Em seu relato, viemos a conhecer sua história e a de Lúcia, uma das cortesãs mais 'almejadas', desejadas, no Rio de Janeiro, sendo dela o perfil mencionado. Aliás, antes de ler a obra, imaginava que seu nome seria Lucíola, mas vim a descobrir depois, no Recanto das Letras, que Lúcia é seu diminutivo, e significa luz e brilho; assim como Lúcifer. Interessante, não? Bem, Paulo a conhece logo no primeiro dia em que chega ao Rio de Janeiro – tendo vindo de Pernambuco –, e se encanta com sua imensa beleza, sem saber qual era sua 'posição' na sociedade; embora não muito diferente de hoje em dia, naquela época era uma imensa desonra se sujeitar a esta situação, considerada indigna e que lhe dá uma reputação manchada para sempre. A partir daí decorre-se a história de seu encantamento, e pode-se dizer, acho, amor pela moça; e vice-versa.

"De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. Às sombras do meu quadro se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo e colorido de límpidos contornos." (p. 24).

Quanto ao enredo, resta pouco a dizer, dado ser, basicamente, a história dos dois. Encantado com Lúcia, Paulo busca se aproximar dela, embora lhe digam para, de certa forma, tomar cuidado, manter um distanciamento, enquanto conhece a Corte e o Rio de Janeiro em si. Porém, é a ingenuidade dele nessa nova cidade e seus hábitos que o faz "não desistir", o faz querer ainda mais conhecê-la e ser amante dela. Então decorrem encontros e desencontros etc.

Quanto à edição que eu li – da Martin Claret, que faz parte da coleção A obra-prima de cada autor – comenta sobre a obra, inclusive dizendo ser importante considerar o contexto da obra e o fato de que as mulheres retratadas não são mulheres reais, e sim idealizadas. Isso realmente é importante. Porque nesse romantismo, a idealização põe a mulher numa espécie de pedestal – e de lá meio que a mulher não faz coisa alguma; inclusive tem toda a questão de ser 'pura' e 'educada' –, a ser admirada e almejada. Lúcia, considerada um tanto excêntrica e cheia de caprichos, apesar de caminhar em direção a essa idealização, por meio do amor de Paulo – ah, a romantização... o que o amor não faz, não é? –, já começa longe de ser 'pura' e 'casta', afinal, embora cortesã possa ser uma palavra que soe bonitinha, ela vive numa vida devassa, vendendo o próprio corpo. Aliás, é interessante ver que ela se mostra uma personagem complexa e leva a uma dualidade questionadora – cuja explicação é dada mais ao final da história, lhe proporcionando ainda mais, a meu ver, um papel romantizado, de moça idealizada –, às vezes sendo descrita com um ar angelical, e, às vezes, com uma aura diabólica/maliciosa. É da descrição dela, de seus atos e o poder da sociedade sobre ambos que surgem diversos temas e críticas. A começar pelo 'poder' da sociedade de optar pela escolha alheia; a dizer o que é certo ou não. Exemplo seria o quão 'impura' é considerada uma cortesã, capaz de manchar a honra de famílias 'decentes'.

"Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives." (p. 77).

Outros temas da obra, além da prostituição e devassidão da Corte do século XIX, são a dualidade entre corpo e alma, amor físico e espirital e os preconceitos da época. A análise de Lucíola no site Guia do Estudante expõe bem esses pontos; e a resenha do site Recanto das Letras também traz uma visão bem detalhada da obra e da figura de Lúcia. Recomendo ambos os textos, caso se interessem (mas aviso, a quem isso possa desagradar, que podem ter spoilers). Inclusive o texto do Guia do Estudante comenta o fato do não distanciamento do narrador com a história, mesmo estando contando-a alguns anos após sua história com Lúcia ter terminado – o que se torna muito mais evidente e considerável quando se sabe como essa história termina. Digo, o narrador expõe os fatos como se os estivesse vivenciando, quase que no presente; mas sabe-se que tem um distanciamento, por comentários seus, em vagas análises dos acontecimentos, dirigidos à senhora.

"Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não se volta, quando se quer, à página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho percorrido." (p. 38).

Disso acho interessante mencionar o estilo do autor; e só após ter comentado com a Helena foi que realmente compreendi que ler uma tradução de clássico nunca é a mesma experiência de ler um clássico no original – e aqui falo de textos em língua portuguesa, porque, né... –, dado que grande parte das traduções, mesmo adaptando a linguagem e tornando-a mais próxima de como seria àquela época, não será e não proporcionará uma experiência de leitura de textos da época na língua originalmente escrita. De início, admito que o estilo de Alencar me surpreendeu um pouco, talvez por fazer tanto tempo que não lia algo parecido, cujas frases parecem utilizar de ordens diferentes; aliás, até o uso das vírgulas me pareceu um tanto diferente (lendo ficava pensando como seria tirar ou colocar uma vírgula aqui e outra ali). Não sei se isso se deve ao fato de que José de Alencar, como menciona um dos textos complementares da edição, tentava se distanciar da linguagem utilizada por Portugal, mas foi interessante pensar depois que achei seu estilo bem distinto, um tanto diferente de Machado de Assis, outro autor do qual já li algumas obras. Esse estranhamento que tive ao início, porém, após a leitura de algumas páginas, foi sumindo ao passo que fui me acostumando ao estilo do autor, de modo que a leitura se tornou um tanto fluida.

"Sucede com as feridas d'alma o mesmo que às feridas do corpo; é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante." (p. 92).

Sobre a edição, apesar das horríveis margens pequenas – que não estão presentes dessa forma em outros volumes da mesma coleção –, é preciso dizer que os textos complementares são bem interessantes, tendo, inclusive, um guia de leitura e algumas questões de vestibular (com gabarito). Sobre o guia de leitura, admito que me senti uma má leitora ao ver que algumas das questões eu não saberia, e ainda não sei, responder. A pior para mim foi: "Em que momento se dá o clímax do enredo de Lucíola?" (p. 153). E eu sinceramente não sei; seria quando sabemos o que acontece com ela ou quando descobrimos sobre Maria da Glória? Ou é ou dois? Ou nenhuma dessas opções? 💦Se souberem, agradeço se me disserem.

Enfim, a obra é considerada um romance urbano e um retrato de uma sociedade, cujos aspectos, em parte, ainda aparecem atualmente. Um ponto particularmente curioso da história é ver essa idealização, a 'redenção' e o encontro com a paz somente por meio desse lado espiritual em contato com a natureza, com a purificação. Bem, mesmo idealizado, e que em alguns momentos eu realmente não compreendi algumas atitudes dos personagens, é uma leitura agradável e que vale a pena. ✌

"Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora." (p. 129).

ALENCAR, José de. Lucíola. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. 157 p. (Coleção a obra-prima de cada autor; 100).

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells

AVISO: 
Este texto é um comentário sobre a obra A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells, 
a qual não recomendo a pessoas extremistas ou simplesmente religiosas demais. 
Pode ser uma leitura "marcante". Além disso, este texto pode não estar isento de spoilers.

Mero detalhe: as edições da Alfaguara são lindas. E essa marca característica na capa então... ❤
Entre o ser humano e os outros animais, a distinção pode tanto ser nítida quanto obscura. E como defini-la? Pela razão, que nem todos (às vezes) parecem possuir? Ou, mesmo considerando que todos a possuem, partindo apenas do conhecimento de mundo, que pode vir a ser pequeno, e tornar o tal ser humano tão semelhante ao animal? Depois de ler A ilha do dr. Moreau, do britânico Herbert George Wells, receio que a racionalidade, nossa arma de sobrevivência no mundo, como apontado em A máquina do tempo, outra obra de H. G. Wells, está, de certo modo, fadada a um uso comedido e, por vezes, inexplorado. Por outro lado, tem-se que ver qual a necessidade dessa racionalidade hoje em dia. E, afinal, o que ela é. Nunca deixando de lembrar que a racionalidade, a razão, vem sempre acompanhada do lado emocional do ser humano - porque mesmo a seriedade advém, de certo modo, do emocional, da capacidade de controle do indivíduo - que, se não acompanhada de uma inteligência emocional - algo que, pelo meu parco entendimento, temos muita falta disso -, acaba perdendo espaço a ações que podem ser consideradas exageradas. Não é de hoje que se busca um equilíbrio. Nisso, ainda, convém retomar a menção de Dostoiévski em Memórias do Subsolo quanto a esta questão (e desculpem-me por mencionar tanto esse livro).

"Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 41).

Particularmente, a obra do britânico terminou de um modo, a mim, surpreendente. Uma crítica, talvez, a essa separação, um apontamento surpreendente sobre algo tão atual, sobre o que nos difere dos animais e o que, afinal, importa ao ser humano. A citação abaixo mostra ao que me refiro. Isso pareceu-me remeter muito à preocupação com o outro, ao quanto estamos, de fato, vivendo e não simplesmente existindo. Muitas obras parecem falar sobre isso; e talvez porque, de fato, esta seja uma questão que percorra a mente de muitas pessoas. Sendo que isso lhe proporciona um certo peso que não pode ser simplesmente ignorado. Não é algo que possa ser lido e posto de lado; porque talvez esta ação seja justamente um possível caminho aos rostos vazios. E será que o rosto, por vezes, também não reflete um pedacinho da nossa vida interior?

“Especialmente repugnantes eram os rostos vazios e inexpressivos das pessoas nos trens e ônibus; não pareciam ser meus semelhantes, não mais que um cadáver o seria, a tal ponto que eu não me atrevia mais a pegar um transporte a menos que tivesse a certeza de estar sozinho ali.” (WELLS, 2012, p. 170).

Admito que esta questão que apresentei não esteja explícita na obra, apesar de ser possível, facilmente, de se chegar a ela pelas falas do narrador. A aparência exterior é tão presente na obra que é difícil, após o término da leitura, não pensar em toda essa relação que está ali, nas entrelinhas. Antes disso, convém explicar um pouco do enredo da obra. 

Logo ao início, sabemos que houve um acidente; o protagonista, Edward Prendick, estava a bordo do navio Lady Vain, que vem a naufragar. Ele e mais outros três conseguem escapar num bote, mas logo os outros morrem, restando apenas ele. Se até esta parte o leitor não perceber que a história será repleta de um drama curioso, não há problema, ainda há muito pela frente. Depois de uns dias à deriva, ele é resgatado pelo navio Ipecacuanha, cujo capitão, infelizmente para nosso protagonista, além de bêbado, não o recebe de bom grado. Junta-se isso, claro, a capacidade do protagonista de ter agido autoritariamente com o capitão; isso para ajudar aquele que o salvou do mar, o médico Montgomery. Com isso, ele tem de desembarcar numa estranha ilha sem nome junto de Montgomery, e alguns animais. E é a partir daqui que passamos a descobrir a respeito dos onze meses que passou "desaparecido" (lê-se, dado como morto) depois do náufrago de Lady Vain. Isto, aliás, não é spoiler, pois toda a história de Prendick é escrita por ele mesmo após escapar da ilha e voltar à sociedade, sendo divulgada, posteriormente, pelo sobrinho; eis como temos acesso à história. Isso lembra um pouco de A máquina do tempo, não? Já que em ambos toda a aventura aconteceu, o personagem volta e é então que, com ele narrando sua aventura, temos conhecimento da história.

A tal ilha, cujo título da obra se refere, tem um segredo um tanto bizarro, que aos poucos vamos descobrindo e compreendendo toda a complexidade que ali se instaura e proporciona muitas reflexões, como é bem apontado no belíssimo prefácio - que, aliás, não recomendo a leitura para quem não goste de spoilers. Como sugere o título, na ilha se encontra o dr. Moreau, um geneticista fissurado com seus estudos e experiências (não muito encantadoras). Prendick, em suas andanças por lá, vem a conhecer os habitantes da ilha, e suas impressões não são nem um pouco agradáveis.

“Parecia que os traços principais dos habitantes daquela ilha eram a feiura e o aspecto grotesco.” (WELLS, 2012, p. 58).

Apesar do aviso no início do texto, evitarei comentar sobre as aventuras de Prendick na ilha, me atendo às impressões e comentários. Voltando ao comentário interrompido anteriormente, com o qual a citação acima tem relação: é a partir da visão exterior que se chega ao ponto do questionamento acerca das diferenças entre humanos e animais. A primeira impressão, o primeiro contato, depende da aparência, e isso fica muito visível. Em seguida, observa-se os gestos, as falas, o comportamento e as ações num todo. A partir de então, traça-se uma opinião mais sólida sobre a criatura observada. Os habitantes da ilha, como se pode constatar no decorrer da obra, passam por conflitos que atingem seus instintos e o conhecimento e a convicção de terem que seguir "a Lei" (explicar mais que isso seria spoiler). Será que Wells 'imaginou' essa lei baseado em alguma religião - como parece apontar o prefácio - ou nas próprias "normas" de moral da sociedade? Fica a dúvida.

“Veio-me a estranha convicção de que, a não ser pela grosseria das linhas e o caráter grotesco das formas, o que eu tinha diante de mim era uma miniatura de todo o complexo equilíbrio da vida humana, o jogo inteiro entre o instinto, a razão e o destino, em sua forma mais simples.” (WELLS, 2012, p. 125).

Além disso, há toda uma questão de compaixão ou compreensão a respeito do outro, seja que criatura for. Algo além do sentido de vida, mais ligado ao que se considera, de fato, como respeito consigo mesmo e com quem está ao seu redor. Isto, aliás, é outro ponto abordado. Digo, os outros ao redor e o ambiente em que se está inserido pode acabar, mesmo que não por gosto ou conscientemente, por afetar-nos sem que percebamos. Essa questão, no que se refere à educação de crianças, por exemplo, é facilmente compreendida; basta lembrar aquela tão conhecida frase que diz que se aprende pelo exemplo. Ao mesmo tempo, isso se refere a toda e qualquer faixa etária, todo e qualquer ambiente. Porque o ser humano tem uma capacidade surpreendente de adaptação (mesmo que inconscientemente).

“Suponho que tudo em nossa existência acaba se situando em função da média do ambiente em que estamos.” (WELLS, 2012, p. 112).

Apesar de trazer questões densas, e um cenário um tanto quanto amedrontador, A ilha do dr. Moreau tem uma narrativa fluida e tranquila tanto quanto possível. O aviso ao início deste texto, meio que uma espécie de brincadeira com o teor da obra, foi apenas algo que pensei ao ler o livro. Afinal, as experiência do dr. Moreau são, ainda, uma espécie de "tabu" e que poderiam causar assombrosos protestos. Isso, também, por abordar todo um outro ponto, que se refere aos estudos científicos e ao cuidado com o outro; a uma reflexão sobre a dor. Por fim, quanto ao desenvolvimento da história, só parece necessário dizer que não esperem por enredo e desenvolvimento impecáveis; mas cujas reflexões e cujo teor suprem todo restante. E, pois é, a recomendo bastante.

“Formulei uma pergunta, concebi um método para buscar a resposta,
e cheguei a uma nova pergunta.” (
WELLS, 2012, p. 99).


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2009. 152 p.

WELLS, Herbert George. A ilha do dr. Moreau. Tradução, prefácio e notas de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 172 p.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

“Ao escavar nossa alma, não raro trazemos à superfície aquilo que, de outro modo, lá permaneceria sem ser notado.” (TOLSTÓI, 2013, p. 155).


A profundidade dos livros russos, a cada obra que leio, me parece mais curiosa e envolvente. Assim como em outras obras, embora haja um foco determinado, ou que assim o pareça, os autores russos parecem conseguir discorrer sobre outros temas e mesmo trazer críticas sem que, a meu ver, deixem o livro enfadonho ou fugindo do suposto fio central da obra. Se a obra tem por foco um casal, nem por isso será uma história que não aborde a profundidade disso e de outros pontos que se ligam ao tal casal; seja questão moral, econômica ou espiritual. Questão, por fim, que dão à obra um teor mais pesado, mas sempre acompanhado de uma narrativa agradável e que te faz querer chegar logo à última página - tenha a obra 100 ou 800 páginas.


Crédito: Estante de luxo. << No link há uma apresentação linda dessa edição, que recomendo darem uma olhada. 💛

Desde que li A elegância do ouriço, da Muriel Barbery, me senti quase intimada a ler Anna Kariênina, e uma curiosidade tamanha me fez comprar o livro ainda ano passado, só aguardando um momento mais calmo para lê-lo. Afinal, não é fácil ler algo de 800 páginas; ainda mais para quem, como eu, tem receio por livros grandes. Apesar disso, estava decidida a lê-lo ainda este ano; e, por coincidência ou não, esta obra está entre os livros do Projeto Viajante Literária, da Helena do Leituras e Gatices. Antes de começar a ler este livro do Tolstói, admito que não sabia muito sobre ele, o que revelou ser uma surpresa agradável. Partindo do que mencionei acima, tenho de admitir que esta obra em particular vai um pouco além, no que se refere aos personagens e questões apresentadas. Tolstói conseguiu reunir uma gama de personagens diferenciados e apresentá-los aos poucos, sem que o leitor se sinta completamente perdido, compreendo certas nuances dos personagens que os diferenciavam. O "foco" do livro, aliás, é a questão do amor, do casamento, do adultério e de como isso é encarado. Em meio a isso, o autor explora algumas questões da vida em sociedade, na cidade, e no campo; comparando uma vida simples e uma vida "tumultuada". Ambas permeadas por questões morais fortes.

Talvez, acima de tudo, para mim, o livro retrata a mudança dos personagens (e das pessoas num todo) com a passagem do tempo; a preocupação ou não com os sentimentos alheios. Além disso, a obra, como mencionei antes, aborda tantas questões, que sinto ser difícil escolher uma só para dizer o quanto esta obra é incrível e merece ser lida; ao passo que mencionar todas que eu percebi parece ser uma lista enfadonha e desagradável.

“Não há situação a que uma pessoa não possa habituar-se, sobretudo quando vê que todos à sua volta vivem assim.” (TOLSTÓI, 2013, p. 692).

Ouso dizer que há quatro personagens principais, a meu ver, sendo o Liévin (meu favorito dentre eles), a Kitty, a Anna Kariênina e o Vrónski. Cada um abarca uma parte da obra, e todos, em algum momento, se intercalam, direta ou indiretamente. Ao início da obra, porém, somos apresentados a Stiepan (irmão de Anna) e Dolly (irmã de Kitty), já adentrando a obra com um casamento aparentemente arruinado devido à traição de Stiepan. E então começa a presença do adultério na obra; e durante toda ela, por sinal, se apresenta a questão de quem, afinal, é o culpado nisso. À época, convém mencionar, havia uma forte marca da dignidade e honra familiar, principalmente aos nobres; algo que, atualmente, não se vê da mesma forma.

“Como vê, a mesmíssima coisa pode ser vista de modo trágico e tornar-se um tormento, ou pode ser vista de modo natural e até alegre.” (TOLSTÓI, 2013, p. 299).

Dividida em oito partes, a obra intercala e apresenta a vida dos personagens numa espécie de vai e vem temporal interessante, que me lembrou, de certo modo, de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. E, aos poucos, vai-se compreendendo a trama que ali se expõe e as complexidades ali envolvidas. Ao mesmo tempo, passa-se a fazer presentes certos apontamentos, observações que, embora de outra época, são hoje ainda muito atuais. Exemplo disso seria a necessidade de querer viver e se sentir vivo, ao mesmo tempo em que há uma opressão da sociedade, tanto em caráter moral quanto econômico. Uma necessidade que, ao passo em que a mente se vê ociosa, põe-se em questionamento o motivo da existência do ser humano e seu papel, de fato, no mundo. Ali, na vida. Junto a isso, põe-se em questionamento, na obra, a capacidade de amar e ser feliz. 

“Em tudo, via apenas a morte ou o avanço rumo à morte. [...] Era preciso, de algum modo, viver sua vida, enquanto a morte não vinha.” (TOLSTÓI, 2013, p. 349). 

Apesar de que, neste caso, parece necessário ser comentado um pouco mais sobre os personagens e sobre o enredo, quero deixá-los à merce da leitura que se fará da obra; pois eu não o conseguiria explicar. Mesmo porque a obra, além do que mencionei, aborda o papel da mulher na sociedade, a independência do homem e a falta dela para a mulher. Temas, por sinal, que merecem abordagens mais críticas e reflexivas. Ou mesmo um espaço maior de/para debate (por alguém que o consiga fazer de fato). Faço, por fim, um comentário quanto à edição que li, da Cosac Naify; que é simplesmente linda. Embora percebi alguns espaçamentos um tanto apertadinhos e um pouquíssimos erros. Ao início de cada parte, há uma imagem de ilustração. Que deixam, por sinal, a leitura mais agradável.

Espero que eu tenha, ao menos, conseguido deixá-los um pouco curiosos pela leitura, caso ainda não a tenham feito. Embora demorada e exija certo fôlego, é prazerosa e com personagens complexos e curiosos. Este é o primeiro romance que leio do autor, e foi tão gratificante que ainda espero ler outras obras dele.


“Agora, só queria ser melhor do que fora.” (TOLSTÓI, 2013, p. 102).


TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Tradução e apresentação de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 816 p. 8 ils.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Projetos: Viajante Literária e Lendo Clássicos

Leituras e Gatices
Cada indivíduo tem uma história, de certa forma, única. Cuja base é, em parte, formada pelo ambiente e cultura em que está inserido. O que torna cada autor, de certo modo, único, não entrando aqui a "habilidade" que o autor tem com a escrita ou a "qualidade" da obra; além de considerar, por outro lado, que o autor não é o sujeito num todo, mas parte dele. Não muito longe desse raciocínio, volto a dizer o que comentei com o texto sobre No Mar, sobre ter autores incríveis em cada canto do mundo e que quero conhecer ao menos alguns deles. Talvez não por acaso que participarei de um projeto sobre essas diferentes literaturas ao redor do mundo. ✌

O Projeto Viajante literária foi criado pela Helena do Leituras e Gatices. Basicamente, ela se propõe a ler doze livros de nacionalidades diferentes ao longo do ano, um por mês. Os locais escolhidos e as respectivas obras seguem abaixo. Só troquei uns dois títulos por outros que eu já tenho na minha estante, pois estou tentando diminuir a quantidade de não lidos (que por pouco não é maior que a quantidade de lidos). Assim como a Helena, não seguirei necessariamente esta ordem. Boa parte dos autores eu já conhecia e até li algumas obras, como Murakami e Jostein Gaarder, mas cada obra pode ser uma novidade.

1. França: Madame Bovary - Gustave Flaubert
2. Ucrânia: O mestre e a margarida - Mikhail Bulgákov
3. Portugal: A desumanização - Valter Hugo Mãe
4. Rússia: Anna Kariênina - Liev Tolstói
5. Nigéria: Americanah - Chimamanda Ngozi Adichie
6. Noruega: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken - Jostein Gaarder
7. Japão: Dance Dance Dance - Haruki Murakami
8. Alemanha: A violoncelista - Michael Krüger
9. Espanha: A sombra do vento - Carlos Ruiz Zafón
10. Irlanda: Drácula - Bram Stocker
11. República Tcheca: O processo - Franz Kafka
12. Colômbia: O amor nos tempos do cólera - Gabriel Garcia Márquez

Bom, às vezes só precisamos de um empurrãozinho ou de uma força exterior para fazer algo que pretendíamos ou queríamos; como ler livros de nacionalidades diferentes ou ler mais clássicos. Aliás, é sobre isso o outro projeto que participarei: Lendo Clássicos, este sendo da Tainan, do Eu Curto Literatura. Este projeto consiste em ler doze clássicos; como a lista acima já possui um bom número deles, no decorrer do ano acrescentarei mais uns títulos.

Sinceramente, adorei os projetos, e tentarei fazer ao menos dez dessas leituras. Não deixando de mencionar, claro, que os projetos unem autores incríveis. (💙)

É, isso. Boas leituras.