quarta-feira, 29 de março de 2017

O problema de não ler /&/ A violoncelista, de Michael Krüger

"Todo mundo sempre deixa algo de si para trás, porque esse algo não cabe mais em sua vida; no entanto, nem por isso, tem a sensação de ter ficado mais pobre." (KRÜGER, 2002, p. 209).

Uma onda de desânimo fez com que eu abandonasse a leitura de A violoncelista por alguns dias, até enfim voltar a tomar a obra em mãos. Não porque o livro seja ruim, não o é; até achei-o muito bom, apesar de eu ler uma boa parte sem entender direito, porque não são temas que eu entenda (história, música...). Soma-se isso ao fato de eu lê-lo aos poucos, o que contribuiu para que eu fosse esquecendo e me distanciando da obra mesmo durante a leitura. Nesse momento em que larguei o livro, por bastante tempo pensei na questão de abandonar as obras, do momento certo para ler determinado livro e, até mesmo, se há um problema em passar dias sem pegar um livro na mão. É provável que alguns pensem logo que não sou uma "verdadeira" leitora, ou leitora compulsiva, e não sou mesmo. Por sinal, antes disso, por algum tempo fiquei pensando que, na verdade, eu leio pouco mesmo agora tendo tempo até de sobra. Parecia um problema, até. Como pode alguém ficar dias sem ler e se considerar um leitor?! Pois é, o problema é justamente esse exagero. Posso ler um livro por ano e continuar sendo uma leitora; e não deveria me sentir mal por isso. Ou posso ler 50, ou 100 ou 200, como algumas pessoas inacreditavelmente conseguem; e me sentir da mesma forma que alguém que leu dez. Só que a qualidade é sempre melhor que quantidade, então se é um ou mil livros por ano, não faz diferença, desde que nesse um eu tenha feito uma boa leitura. Isso parece um pouco com uma desculpa, mas no fundo é o que importa, não é?

Sim, eu sei que seria mais certo se fosse um violoncelo, mas não tenho um. Então é meu violino mesmo que eu não sei tocar. ❤

Para tentar me animar e voltar à leitura de A violoncelista, busquei resenhas da obra, pois quem sabe um elogio à obra me servisse de impulso; infelizmente, não encontrei sequer uma resenha, seja positiva, seja negativa, seja neutra. E, até esse momento, eu estava decidida a não escrever sobre essa obra, justamente devido a esse meu distanciamento com a obra e tudo o mais. Só que não encontrar nenhuma resenha de um livro tão bem escrito é algo muito triste; e um fato que descobri ao final da minha leitura me fez decidir que, mesmo sendo vago e impreciso demais, iria expor um pouco num texto sobre essa obra que parece um pouco esquecida nas páginas de pesquisa do Google das quais me servi. Portanto, a opinião aqui é realmente imprecisa, mas serve apenas para dizer: leiam, que vale a pena.

"E era evidente também que aquele homenzinho magérrimo escolhera a mim para recontar sua vida e advertir a não amontoar tanta coisa começada e inacabada, de que não pudesse me livrar depois." (KRÜGER, 2002, p. 97).

Uma das surpresas da obra de Michael Krüger, percebida nos primeiros capítulos, é que o livro praticamente não dispõe de um diálogo sequer traçado com travessão ou aspas. Exatamente, sem as marcas habituais a que estamos acostumados; pode parecer estranho e confuso, mas serviu muito bem à narrativa. Claro, para quem já leu Saramago pode facilmente associar a ele e ter uma ideia de obra nesse estilo. Só que há uma diferença: Krüger tem uma narrativa mais "precisa" e facilmente identificável de quem está falando o quê, ao contrário do que se vê em Ensaio sobre a cegueira. Vale considerar, aliás, que há pouquíssimas falas no decorrer do livro. O que dá ao livro um tom de narração de memórias tão bonito que chega a ser admirável. (Isso não foi irônico). Esse estilo empregado é fluido e, de certo modo, possui uma elegância que me encanta. Ou pode ser porque prefiro histórias assim, cujo personagem num determinado presente relata suas memórias do passado, nem sempre em ordem cronológica.

A obra, narrada em primeira pessoa, conta a história de um compositor na faixa dos cinquenta anos que deseja produzir uma ópera baseada nos textos do russo Ossip, projeto que, aparentemente, ninguém o apoia; apesar de ter produzido algumas músicas com teor mais clássico (imagino que não esteja errado dizer assim), sua fama decorreu das trilhas que produziu para programas de TV. Seu projeto sobre Ossip, contudo, parece cada vez mais longe de ser concluído quando ele recebe a visita de Judit, a filha de sua amiga Maria. O protagonista sequer sabe quem é o pai de Judit, e possui suas dúvidas sobre possivelmente ser seu pai. Não bastando isso, a jovem parece imitar as ações de Maria, fazendo-o relembrar de seu passado, e, também, parece virar sua rotina de cabeça para baixo, retirando-o de seu sossego.

"Cada um tem seu espaço, a ele destinado. Às vezes, é necessária uma vida inteira para encontrá-lo e, ainda assim, não ocupá-lo, porque, de tanto procurar, ficou-se cego para suas qualidades." (KRÜGER, 2002, p. 161).

Interligado ao enredo, vê-se muitos apontamento sobre arte, música e mesmo um pouco sobre história. Apesar de que não tenho base suficiente para comentar a respeito, parece-me certo dizer que o escritor tem bastante conhecimento sobre o que apresenta, pois seus questionamentos são por vezes intrigantes. A isso junta-se um drama sobre o personagem cuja vida parece desbotada, mas que não o percebe e continua rememorando a vida e pensando nas suas obras produzidas.

"A arte afastara o homem da sociedade; a partir do momento em que todo mundo passara a poder tornar-se artista, a profissão se fizera almejada e o Estado ou a sociedade haviam sucumbido àquele fato, criando mais e mais institutos a conduzir a massa de aspirantes a artistas, todos autodenominando-se artistas formados depois de oito semestres de estudos, mas desprovidos da mais vaga ideia do que fosse a arte." (KRÜGER, 2002, p. 121).

A obra toda intercala, em sua narrativa encantadora, uma espécie de drama, uma confusão e diversos questionamentos que fazem com esse não seja um livro apenas sobre o reencontro com o passado e os obstáculos que fazem com que a vida aos poucos possa ser desbotada se não tomarmos cuidado. Embora alguns pontos pareçam ter ficado um pouco vago (ou talvez eu não tenha entendido bem, pode ser), de modo que me parece que poderia haver um aprofundamento ainda maior acerca de alguns personagens, não posso deixar de pensar que no estilo narrativo não havia necessidade de se explicar o que foi deixado de lado. Porque alguém pensando na sua vida não fica explicando tudo nos mínimos detalhes para si mesmo; nós, leitores da vida alheia, é que temos essa curiosidade que parece que necessita ser preenchida. Por um lado, quem sabe uma releitura e uma mente posta para funcionar consiga preencher esses espacinhos vagos. Por outro, fica o pensamento de que às vezes os autores realmente não querem nos dar todas as respostas/explicações de bandeja (um resquício de maldade, será?).

"Quanto mais mergulhava na leitura sobre os campos de concentração, mais impossível foi se fazendo para mim conceber uma música que transmitisse sequer um eco longínquo de todo aquele sentimento." (KRÜGER, 2002, p. 174).

Só ao término da leitura, nas últimas cinquenta páginas, foi que comecei a pensar que a história parecia um pouco "real" demais em alguns pontos, o que me fez recorrer ao Google e descobrir que Gyorgy, nome do narrador-protagonista, é o nome de um compositor que de fato existiu e, olha só!, até mesmo foi compositor da trilha do filme 2001 (cujo livro ainda lerei). Bom, é isso, sei que ficou um pouco vago, mas espero que tenha servido ao propósito.

"Em todas as demais horas que passo acordado,
entrego-me a comparações, o que faz com que, várias vezes ao dia,
sinta-me tentado a jogar a toalha." (KRÜGER, 2002, p. 20).

KRÜGER, Michael. A violoncelista. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 213 p.

quarta-feira, 22 de março de 2017

As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis


Que todo bom autor é influenciado por outros não é novidade; e que às vezes acabamos recebendo parte dessa influência, também não. Já há tempos pretendia ler As Crônicas de Nárnia, mas foi uma menção a essa obra em Um oceano no fim do caminho, de Neil Gaiman, que me fez decidir por, finalmente, ler esta obra que reúne sete livros. Sinceramente, foi um erro ter demorado tanto a lê-lo. Tanto porque a obra num todo é impressionante, quanto porque, agora, a fantasia cada vez mais me desanima; o que me fez, em alguns momentos, me decepcionar com Nárnia. Mas uma coisa por vez; a obra é incrível! Não nego. Antes de mais nada, tem de ficar claro que a obra é nitidamente para o público infantojuvenil. Isso significa: a narrativa é simples, fluida e repleta de aventuras e elementos maravilhosos para criar as mais curiosas histórias. Apesar de haver muita coisa de fundo, os temas fortes e tudo o mais, é uma história que, a meu ver, teria amado ler uns anos atrás. Mas, como eu disse, demorei a ler e, infelizmente, não consegui ler tudo com um olhar menos "chato". A começar pelo fato de que os enredos me parecem simples. Os protagonistas, aliás, são simples. Alguns são crianças normais, mas que, movidas pelas aventuras, mostram traços de coragem, bravura etc. que geralmente não vemos no dia a dia. O fato de serem assim simples, aliás, é algo admirável, porque, afinal, muitas crianças já tiveram seus mundos imaginários, e Nárnia bem pode ser o mundinho de algumas delas. O que mostra que uma boa história não precisa de um personagem superpoderoso, superpoderes incríveis e coisas do tipo; só precisa de uma motivação, uma aventura e um bom desfecho.

No decorrer da obra os personagens aparecem em diferentes lugares, além de Nárnia, como Calormânia e Arquelândia. E, um ponto positivo da obra é que tem alguns mapas (não só esse da foto) que ajudam a visualizar melhor o mundo de Nárnia.

Parece-me que estou desmotivando a leitura da obra, mas não estou. Embora eu admita que em certo momento a leitura foi, para mim, muito arrastada, foi porque há uma quantidade de movimentação, aventuras e ilhas cheias de magia e elementos demais para mim. (Não leio muita fantasia, que fique claro.) Pois bem, As Crônicas de Nárnia é uma obra em volume único que abarca sete
 livros e um pequeno texto sobre escrever para crianças escrita pelo britânico C. S. Lewis. A ordem dos livros, aliás, não é a ordem em que foram publicadas, mas sim a ordem que o autor escolheu e que, me parece, é a ordem cronológica dos eventos relacionados ao mundo de Nárnia. Abaixo coloco um pouco sobre cada livro, só um pouco mesmo. Este texto aqui, aliás, não é uma resenha e, sim, um comentário sobre a obra num todo. Cada texto abaixo sobre determinado livro não tem spoiler da história em si, mas como pode remeter a outras histórias, pode ter pequenos spoilers das histórias anteriores. A cadeira de prata, por exemplo, tem spoiler de A viagem do Peregrino da Alvorada. Por favor, não desanimem com meus comentário e leiam, sim, esta obra de C. S. Lewis.


O SOBRINHO DO MAGO
Numa narrativa tranquila, leve e fluida, C. S. Lewis apresenta o início das viagens ao mundo de Nárnia. No primeiro livro do volume, duas crianças, Polly e Digory, são levadas, sem que queiram, a um mundo desconhecido, graças às experiências do tio do menino, o André, que muito estudava sobre magia e fabricara anéis que pudessem viajar entre mundos. Nessa viagem acabam conhecendo o arruinado mundo de Charn, já muito decadente, e libertando uma poderosa feiticeira, Jadis, que trará alguns problemas às crianças. Em meio a isso, eles acabam indo parar em Nárnia, ou melhor, no início do mundo de Nárnia, quando tudo estava sendo criado e estabelecido por Aslam, o leão.

"Quando as coisas vão mal, parece que vão de mal a pior durante certo tempo; mas quando começam a ir bem, parecem cada vez melhores." (LEWIS, 2009, p. 96).


O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA
Neste livro, os protagonistas já são outros, embora Digory reapareça como o professor que o livro anterior afirmou que seria. Nessa nossa aventura em Nárnia, conhecemos quatro irmãos, Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia, que, devido à guerra, foram morar um tempo numa casa de campo. Lá, Lúcia, a mais nova, acaba descobrindo que o guarda-roupa dá passagem à Nárnia. E aí começa a aventura, envolvendo Jadis, a Feiticeira Branca, que agora tomou controle de Nárnia na ausência de Aslam. Em comparação com o primeiro, este parece mais denso, triste, até. Principalmente até a metade da história. Já que, de começo, ninguém quis acreditar que Lúcia havia encontrado um outro mundo por meio do guarda-roupa. Assim como é, de certo modo, normal não se acreditar nos mundos imaginários das crianças.

"Mas se você sabe o que é isso, se já passou a noite toda acordado e chorou até acabarem as lágrimas... Então sabe que, no fim, desce sobre a gente uma grande calma. Chegamos até a ter a sensação de que nada mais nos pode acontecer." (LEWIS, 2009, p. 173).


O CAVALO E SEU MENINO
Nesta história, o protagonista é Shasta, um pobre menino, e Bri, um cavalo de Nárnia que fora sequestrado quando jovem. Ambos se encontraram em Calormânia e decidem fugir para Nárnia juntos. O enredo é basicamente a fuga dos dois até alcançarem Nárnia; e aparecem alguns personagens das histórias anteriores (neste livro já se percebe que Aslam estará em todas as histórias, aliás). Em meio a isso, há algumas confusões e até uma guerra. Pareceu-me curioso como a história abordou sobre escravidão e liberdade, e até um pouco sobre a nobreza. Nisso incluindo o fato de que, enquanto escravo, a criatura vai até o limite de suas forças, por obrigação, e depois, já livre, não se força a isso nunca mais. Por fim, uma das frases mais marcantes, diria, nesta história, é de não se contar a história de outro. O que me parece poder se referir a tanta coisa, seja para um escritor/leitor, seja para nós, pessoas, no dia a dia. Ao escritor, pode ser tanto não se apressar contando tudo de uma vez, quanto não misturar tudo. Às pessoas, podar a curiosidade em excesso e caminhar passo a passo, não tropeçando, por assim dizer. Enfim, apesar de um tanto "fraquinha" no enredo em si, é uma boa história. 

"- Aslam - disse Bri, com a voz estremecida -, acho que sou um estúpido.
- Feliz o cavalo que sabe disso ainda na juventude. Ou o humano." (LEWIS, 2009, p. 278).


PRÍNCIPE CASPIAN
Apesar do título, o príncipe Caspian parece ser apenas um elemento a mais na história de Nárnia envolvendo os antigos reis e rainhas da Idade de Ouro do país. Passados séculos após as histórias anteriores, nesta, Nárnia está sob comando de humanos, tendo expulsado os animais falantes e outros seres místicos. Caspian, descobrindo toda a velha história de Nárnia, parte em busca de mudar a situação do país, para isso convocando ajuda. Príncipe Caspian aborda temas já anteriormente apresentados e traz um ar mais sombrio do que as demais, do início ao fim; do castelo em ruínas às despedidas. Enfim, durante uma passagem desta história, ficou claro a mim que, embora sendo uma história para crianças, e toda a narrativa seja voltada a esse público, não é um livro destituído de apontamentos, dúvidas e certos "ensinamentos" aos pequeninos. A citação abaixo, por exemplo, fez-me pensar logo em A ilha do dr. Moreau, e toda a questão do ser humano/animal, exterior/interior e sobre comportamento.

"- Não seria medonho se um dia, no nosso mundo, os homens se transformassem por dentro em animais ferozes, como os daqui, e continuassem por fora parecendo homens, e a gente assim nunca soubesse distinguir uns dos outros?" (LEWIS, 2009, p. 349).


A VIAGEM DO PEREGRINO DA ALVORADA
Para resumir bem resumidinha esta história, basta dizer que Peregrino da Alvorada é o nome de um navio. Nesta história, além de Caspian, Lúcia e Edmundo, surge outro personagem para ganhar espaço como protagonista, o Eustáquio, apresentado no primeiro capítulo. Nas aventuras do Peregrino, eles percorrem mares distintos e ilhas mágicas e repletas de elementos curiosos. Este é o livro mais fraco, a meu ver. Tirando o começo, ouso dizer que a fantasia, o mágico, o mirabolante e a aventura ganham um espaço maior do que outras questões, como nos livros anteriores. Não há muito o que dizer sobre este livro além disso, pois seria spoiler. E, na minha opinião, foi o menos legal, e foi um tanto revoltante também. Foi o primeiro livro, aliás, em que notei o narrador em uma conversa direta com um dos personagens; o que me fez questionar quem é o narrador.

"- Você viveu a vida toda à custa de corações despedaçados. Ainda que peça esmola na rua da amargura, sempre é melhor do que ser escravo." (LEWIS, 2009, p. 430).


A CADEIRA DE PRATA
Sinceramente, meu primeiro comentário deve ao fato de que este título não me mostrou muito relevante para o conteúdo inteiro da história; a cadeira, embora importante (ou ao menos assim parece quando o tal objeto surge na história), é apenas um elemento como diversos outros. Mesmo o "guarda-roupa" tem um papel muito mais relevante na segunda história do que a cadeira nesta. Mas, enfim, sobre a história... Nesta, Eustáquio volta a mais uma aventura no mundo de Nárnia, acompanhado de Jill, uma colega sua. Ambos são encarregados de cumprir uma missão a pedido de Aslam; encontrar e trazer o príncipe Rilian, filho de Caspian (o mesmo Caspian das duas histórias anteriores), de volta. O enredo é basicamente a aventura deles no decorrer dessa missão, encontram gigantes, gnomos e mesmo uma feiticeira. A cadeira de prata mostrou ser uma história um pouco mais lúgubre que as demais. Os personagens, a meu ver, parecem meio sem sal, nem açúcar; só o Brejeiro (um paulama, criatura que parece um sapo) se destaca, com seu imenso pessimismo.

"Chorar funciona mais ou menos enquanto dura. Porém, mais cedo ou mais tarde, é preciso parar de chorar e tomar uma decisão." (LEWIS, 2009, p. 527).


A ÚLTIMA BATALHA
De todas, a mais sombria, e, ao mesmo tempo, aquela em que há o cenário mais maravilhoso. Esta história, como diz o título, é a última batalha de Nárnia. Todas as histórias anteriores se encerram nesta. Ao que parece, o foco se dá no fim e início de tudo, na crença que as criaturas possuem e como essa pode ser também uma ruína. Se dizem que As Crônicas de Nárnia tem um "quê" bíblico, é nessa que toda essa "referência" fica mais visível, mesmo para quem não conhece muito da bíblia (como eu). Dizer o porque pode ser spoiler dessa história, mas não é difícil dizer que isso dá todo um ar diferente à Nárnia. Enfim, nesta história se conhece o último rei de Nárnia, Tirian, e seu companheiro Precioso, um unicórnio; mas, de início, somos apresentados a dois animais que dão início (ao fim) da história: Manhoso, um macaco esperto, um tanto ganancioso e que, convenhamos, é aquele personagem que você não consegue gostar, e Confuso, um jumento que acredita não ser esperto (porque Manhoso o faz pensar assim) e acaba sendo levado a usar uma pele de leão para enganar outras criaturas, fazendo se passar, assim, por Aslam. Bom, disso já dá para imaginar no que essa história vai levar. Embora esse último livro do volume seja mais profundo e que mescle bem o lado sombrio com o lado "luminoso", levando a um questionamento sobre crença e coisas afins, diria que foi um fechamento adequado à obra num todo.

"Um guerreiro nunca diz palavrões. Palavras corteses e golpes duros são sua única linguagem." (LEWIS, 2009, p. 700).


TRÊS MANEIRAS DE ESCREVER PARA CRIANÇAS
"Escrevi o que eu gostaria de ter lido quando criança e que ainda gosto de ler agora, 
com mais de cinquenta anos." (LEWIS, 2009, p. 741).

Neste texto curtinho, Lewis não pretende fazer uma espécie de manual ou qualquer coisa do tipo; para ele existem três tipos de maneiras de escrever para crianças, e é disso que ele fala, focando em uma, a que ele domina. Lendo o texto, aliás, o primeiro pensamento foi o de que muita gente PRECISA ler esse texto. De verdade, sério mesmo! Não por ser único, porque sei que deve haver muitos outros textos* e até livros falando sobre isso; mas porque esse é sucinto, vai direto ao ponto, é curtinho e justamente por ser curtinho podemos dizer para que o leiam "rapidinho". Particularmente, pensei em alguns casos específicos, mas acho que todo mundo já se deparou com algum indivíduo "mente fechada" que acredita que crianças não devem ler histórias de "bruxas", "demônios" e coisas afins. Fantasia num geral, acho que me entenderam. Pessoas que acham que Harry Potter ou qualquer livro do gênero é algo do "demônio" e que as crianças deviam ser proibidas de ler. Só porque "não condizem com a realidade", possuem maldade estampada e seres maléficos.

"O conto de fadas é acusado de dar às crianças uma falsa impressão do mundo em que vivem. Na minha opinião, porém, nenhum outro tipo de literatura que as crianças poderiam ler lhes daria uma impressão tão verdadeira." (LEWIS, 2009, p. 746).

Lewis apenas retratou sua visão do assunto, mas mostrou claramente a diferença de um livro com fantasia e seres mágicos de um sem. Porque, afinal, mesmo essas criaturas de outro mundo nas histórias tem por base questões psicológicas e morais, seja um ser bom, seja um ser ruim/malvado. E, por outro lado, fica tão claro o quanto é errado negar essas histórias às crianças, que me dá certa raiva saber que ainda há quem o faça. Há monstros, claro; mas e os heróis? Há também.

"Inclino-me quase a afirmar como regra que uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem. Uma valsa da qual você só gosta enquanto está dançando não é uma boa valsa." (LEWIS, 2009, p. 743).

Enfim, sobre esse texto, ainda, só posso pedir para que o leiam. Vale a pena, diria até que é um dos pontos mais curiosos de toda a obra de As Crônicas de Nárnia. Talvez seja assim para mim por questões particulares, mas isso não diminui a densidade da obra. Lewis escreveu algo que gostaria de ler, e que os adultos também apreciariam; e conseguiu. Admito que me vi arrastada em algumas partes (e num dos livros inteiro, aliás), mas é difícil negar que a obra num todo tem um encanto curioso. É assim que uma história para crianças tem de ser; que elas gostem, e que vá além do que elas mesmas poderiam criar, como diz Lewis em seu texto que fecha a obra.


* Um texto que abarca questão semelhante é o Estou velho demais para ler fantasia?, do site Baião de Letras, bem interessante e que recomendo a leitura para quem se interessar pelo tema. 

LEWIS, C. S. As crônicas de Nárnia. Tradução de Silêda Steuernagel e de Paulo Mendes Campos; ilustrações de Pauline Baynes. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 751 p.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells

AVISO: 
Este texto é um comentário sobre a obra A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells, 
a qual não recomendo a pessoas extremistas ou simplesmente religiosas demais. 
Pode ser uma leitura "marcante". Além disso, este texto pode não estar isento de spoilers.

Mero detalhe: as edições da Alfaguara são lindas. E essa marca característica na capa então... ❤
Entre o ser humano e os outros animais, a distinção pode tanto ser nítida quanto obscura. E como defini-la? Pela razão, que nem todos (às vezes) parecem possuir? Ou, mesmo considerando que todos a possuem, partindo apenas do conhecimento de mundo, que pode vir a ser pequeno, e tornar o tal ser humano tão semelhante ao animal? Depois de ler A ilha do dr. Moreau, do britânico Herbert George Wells, receio que a racionalidade, nossa arma de sobrevivência no mundo, como apontado em A máquina do tempo, outra obra de H. G. Wells, está, de certo modo, fadada a um uso comedido e, por vezes, inexplorado. Por outro lado, tem-se que ver qual a necessidade dessa racionalidade hoje em dia. E, afinal, o que ela é. Nunca deixando de lembrar que a racionalidade, a razão, vem sempre acompanhada do lado emocional do ser humano - porque mesmo a seriedade advém, de certo modo, do emocional, da capacidade de controle do indivíduo - que, se não acompanhada de uma inteligência emocional - algo que, pelo meu parco entendimento, temos muita falta disso -, acaba perdendo espaço a ações que podem ser consideradas exageradas. Não é de hoje que se busca um equilíbrio. Nisso, ainda, convém retomar a menção de Dostoiévski em Memórias do Subsolo quanto a esta questão (e desculpem-me por mencionar tanto esse livro).

"Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo." (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 41).

Particularmente, a obra do britânico terminou de um modo, a mim, surpreendente. Uma crítica, talvez, a essa separação, um apontamento surpreendente sobre algo tão atual, sobre o que nos difere dos animais e o que, afinal, importa ao ser humano. A citação abaixo mostra ao que me refiro. Isso pareceu-me remeter muito à preocupação com o outro, ao quanto estamos, de fato, vivendo e não simplesmente existindo. Muitas obras parecem falar sobre isso; e talvez porque, de fato, esta seja uma questão que percorra a mente de muitas pessoas. Sendo que isso lhe proporciona um certo peso que não pode ser simplesmente ignorado. Não é algo que possa ser lido e posto de lado; porque talvez esta ação seja justamente um possível caminho aos rostos vazios. E será que o rosto, por vezes, também não reflete um pedacinho da nossa vida interior?

“Especialmente repugnantes eram os rostos vazios e inexpressivos das pessoas nos trens e ônibus; não pareciam ser meus semelhantes, não mais que um cadáver o seria, a tal ponto que eu não me atrevia mais a pegar um transporte a menos que tivesse a certeza de estar sozinho ali.” (WELLS, 2012, p. 170).

Admito que esta questão que apresentei não esteja explícita na obra, apesar de ser possível, facilmente, de se chegar a ela pelas falas do narrador. A aparência exterior é tão presente na obra que é difícil, após o término da leitura, não pensar em toda essa relação que está ali, nas entrelinhas. Antes disso, convém explicar um pouco do enredo da obra. 

Logo ao início, sabemos que houve um acidente; o protagonista, Edward Prendick, estava a bordo do navio Lady Vain, que vem a naufragar. Ele e mais outros três conseguem escapar num bote, mas logo os outros morrem, restando apenas ele. Se até esta parte o leitor não perceber que a história será repleta de um drama curioso, não há problema, ainda há muito pela frente. Depois de uns dias à deriva, ele é resgatado pelo navio Ipecacuanha, cujo capitão, infelizmente para nosso protagonista, além de bêbado, não o recebe de bom grado. Junta-se isso, claro, a capacidade do protagonista de ter agido autoritariamente com o capitão; isso para ajudar aquele que o salvou do mar, o médico Montgomery. Com isso, ele tem de desembarcar numa estranha ilha sem nome junto de Montgomery, e alguns animais. E é a partir daqui que passamos a descobrir a respeito dos onze meses que passou "desaparecido" (lê-se, dado como morto) depois do náufrago de Lady Vain. Isto, aliás, não é spoiler, pois toda a história de Prendick é escrita por ele mesmo após escapar da ilha e voltar à sociedade, sendo divulgada, posteriormente, pelo sobrinho; eis como temos acesso à história. Isso lembra um pouco de A máquina do tempo, não? Já que em ambos toda a aventura aconteceu, o personagem volta e é então que, com ele narrando sua aventura, temos conhecimento da história.

A tal ilha, cujo título da obra se refere, tem um segredo um tanto bizarro, que aos poucos vamos descobrindo e compreendendo toda a complexidade que ali se instaura e proporciona muitas reflexões, como é bem apontado no belíssimo prefácio - que, aliás, não recomendo a leitura para quem não goste de spoilers. Como sugere o título, na ilha se encontra o dr. Moreau, um geneticista fissurado com seus estudos e experiências (não muito encantadoras). Prendick, em suas andanças por lá, vem a conhecer os habitantes da ilha, e suas impressões não são nem um pouco agradáveis.

“Parecia que os traços principais dos habitantes daquela ilha eram a feiura e o aspecto grotesco.” (WELLS, 2012, p. 58).

Apesar do aviso no início do texto, evitarei comentar sobre as aventuras de Prendick na ilha, me atendo às impressões e comentários. Voltando ao comentário interrompido anteriormente, com o qual a citação acima tem relação: é a partir da visão exterior que se chega ao ponto do questionamento acerca das diferenças entre humanos e animais. A primeira impressão, o primeiro contato, depende da aparência, e isso fica muito visível. Em seguida, observa-se os gestos, as falas, o comportamento e as ações num todo. A partir de então, traça-se uma opinião mais sólida sobre a criatura observada. Os habitantes da ilha, como se pode constatar no decorrer da obra, passam por conflitos que atingem seus instintos e o conhecimento e a convicção de terem que seguir "a Lei" (explicar mais que isso seria spoiler). Será que Wells 'imaginou' essa lei baseado em alguma religião - como parece apontar o prefácio - ou nas próprias "normas" de moral da sociedade? Fica a dúvida.

“Veio-me a estranha convicção de que, a não ser pela grosseria das linhas e o caráter grotesco das formas, o que eu tinha diante de mim era uma miniatura de todo o complexo equilíbrio da vida humana, o jogo inteiro entre o instinto, a razão e o destino, em sua forma mais simples.” (WELLS, 2012, p. 125).

Além disso, há toda uma questão de compaixão ou compreensão a respeito do outro, seja que criatura for. Algo além do sentido de vida, mais ligado ao que se considera, de fato, como respeito consigo mesmo e com quem está ao seu redor. Isto, aliás, é outro ponto abordado. Digo, os outros ao redor e o ambiente em que se está inserido pode acabar, mesmo que não por gosto ou conscientemente, por afetar-nos sem que percebamos. Essa questão, no que se refere à educação de crianças, por exemplo, é facilmente compreendida; basta lembrar aquela tão conhecida frase que diz que se aprende pelo exemplo. Ao mesmo tempo, isso se refere a toda e qualquer faixa etária, todo e qualquer ambiente. Porque o ser humano tem uma capacidade surpreendente de adaptação (mesmo que inconscientemente).

“Suponho que tudo em nossa existência acaba se situando em função da média do ambiente em que estamos.” (WELLS, 2012, p. 112).

Apesar de trazer questões densas, e um cenário um tanto quanto amedrontador, A ilha do dr. Moreau tem uma narrativa fluida e tranquila tanto quanto possível. O aviso ao início deste texto, meio que uma espécie de brincadeira com o teor da obra, foi apenas algo que pensei ao ler o livro. Afinal, as experiência do dr. Moreau são, ainda, uma espécie de "tabu" e que poderiam causar assombrosos protestos. Isso, também, por abordar todo um outro ponto, que se refere aos estudos científicos e ao cuidado com o outro; a uma reflexão sobre a dor. Por fim, quanto ao desenvolvimento da história, só parece necessário dizer que não esperem por enredo e desenvolvimento impecáveis; mas cujas reflexões e cujo teor suprem todo restante. E, pois é, a recomendo bastante.

“Formulei uma pergunta, concebi um método para buscar a resposta,
e cheguei a uma nova pergunta.” (
WELLS, 2012, p. 99).


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2009. 152 p.

WELLS, Herbert George. A ilha do dr. Moreau. Tradução, prefácio e notas de Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. 172 p.