“Por mais que nos vejamos
como sendo pessoas de mentes abertas, ainda estamos aprisionados por nossas
crenças culturais.” (DOUGHTY, 2016, p. 79).
Algumas vezes no decorrer dos últimos anos, tive algumas conversas das
quais gosto de dizer que foram “uma viagem”. Não em um sentido negativo; um
positivo. No ponto em que essas conversas fugiam do “comum/cotidiano” e me
faziam pensar um pouco além da minha caixinha; por isso ‘viagem’, por me levar
a outros espaços. Algumas podem ter sido até que bizarras, outras, curiosamente
incríveis. Infelizmente, não são conversas que se pode ter com qualquer pessoa;
não é qualquer um que vai te ouvir falar sobre a influência das portas sem achar isso incrivelmente estranho/bizarro – a menos que tenha lido A elegância do ouriço. Após algumas dessas
conversas, além de perceber que algumas pessoas são mais mentes abertas que
outras – apesar de, como diz a citação de abertura deste texto, há certo limite
para nossas mentes abertas –, cada vez mais passei a ver o quanto cada sujeito
único pode nos afetar, mesmo sem perceber. E essas pequenas conversas, por
exemplo, ajudaram a moldar a eu de
agora. Estamos sempre aprendendo, e as pessoas que
conhecemos vão importar em cada momento e em cada
atitude nossa. Não prolongando demais, o fato é que a vida, em si, é uma
constante mudança, que não depende, jamais, apenas de nós mesmos.
Volto, então, a
uma das conversas que tive nesse último semestre. Foi sobre um documentário: Adeus,
Betty. Recomendo que assistam, é um tanto trágico, mas curioso. Ao refletir
sobre o que assisti, dentre vários pontos, como a importância da imagem e dos relacionamentos, a questão
do “suicídio” é a que vem ao encontro do livro que quero comentar desta vez. O
documentário não é sobre suicídio, mas não deixa de mencioná-lo. Betty queria
morrer – ou seria atenção? – e pedia isso aos seus conhecidos; pedia que a
matassem. Ignorando a parte do possível desejo de atenção, havia um desejo de sumir, de escapar de um futuro incerto e desagradável. Bem, gosto de pensar que
existem duas mortes: a física e a psíquica. Betty provavelmente estava perdendo
a vivacidade de sua mente (ou alma, não sei bem que palavra usar aqui), e via
na morte uma escapatória. Se alguém não a matasse, talvez a ajudassem a
encontrar um ponto de apoio, algo que a auxiliasse a ver uma ‘luz no fim do
túnel’, um futuro menos triste e depressivo. Porque às vezes isso é tudo que as
pessoas querem: um apoio, uma certeza de que haverá algo bom. Porque a certeza
da morte todos temos.
“A morte guia todos os impulsos
criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto
chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos.”
(DOUGHTY, 2016, p. 13).
Dizem, até, que esta é a única certeza da vida; e talvez seja. Ao mesmo
tempo, é muito delicado falar sobre morte. Não preciso nem ir muito longe para
expressar isto. Enquanto lia Confissões
do crematório, mostrei o livro a algumas pessoas – porque, também, a edição
é lindíssima –, que, logo de cara, mostraram em suas falas e expressões o
quanto este, tanto a questão do crematório quanto a da morte, é um tema
espantoso, assustador, até, e que “não leriam”. Esse livro, ao olhar delas, era
algo para mim – a pessoa que gosta de drama e de ler sobre sofrimento e coisas
relacionadas à morte –, apenas, e não para elas. É mórbido. Talvez, se eu tivesse mencionado pontos mais detalhados,
as pessoas se empolgassem a lê-lo. Ou não. Porque falar de morte não é fácil.
Aceitar a própria mortalidade não é fácil. Sinceramente, eu ainda tenho
dificuldade de aceitar isso. De que amanhã posso não estar aqui. De que posso
morrer sem me sentir bem comigo mesma etc. Enfim, de que a minha morte esteja longe de
ser uma boa morte.
“Para mim, a boa morte inclui estar preparada
para morrer, com minhas coisas em ordem, os recados bons e ruins que precisam
ser entregues resolvidos. A
boa morte quer dizer morrer enquanto minha mente está lúcida e ciente; também
significa morrer sem ter que enfrentar grandes quantidades de sofrimento e
dor.” (DOUGHTY, 2016, p. 223).
Só que este livro não é apenas para quem se interessa por estes temas,
ele é para todos. É como um ‘tapa na cara’ dessa “cultura do silêncio”. Não
digo que todos irão se encantar com a obra, colocar nos favoritos e dizer “amei”,
não. O que Caitlin tem a nos dizer é basicamente que estamos fugindo e negando
a única certeza que temos na vida: até porque, como ela mesma diz, “Recusar-se
a falar sobre o assunto e chamar a morte de ‘inesperada’ não é uma desculpa
aceitável.” (DOUGHTY, 2016, p. 119). E
ela faz isso com uma narrativa tranquila e até um tanto divertida. Doughty fala
sobre a morte de diversos pontos e mostra que há, no nosso medo dela, uma razão
cultural e histórica. Há medos infundados e a necessidade, principalmente, de
aceitar a realidade. O que, também, é algo histórico, social e cultural. Nós,
como sociedade, às vezes fugimos disso, por medo, receio, pavor. E o desconhecido
sempre nos trouxe e trará essas sensações. Admito
que pensar
na morte e nessa ausência costuma me deixar um tanto triste, com aquela sensação de
algo não concluído; um pequeno desespero que vem rápido e certeiro. Mas, por outro lado, também vejo a necessidade de se pensar nisso e tentar encarar esta questão mais de frente, não a jogando para o lado como se fosse possível evitá-la para sempre.
Sequer me atrevo a tentar justificar porque devem ler esta obra, ou, ao
menos, pensar sobre o assunto. Caitlin faz isso muito bem, e gostaria que
aqueles que ainda não leram a obra dessem uma chance ao Confissões do Crematório. Até porque é um livro que traz informações interessantes e
até mesmo contextualiza e compara diferentes épocas e como a morte é tratada
nelas. Além de deixar claro que, na morte, não há distinção.
“As pessoas no frigorífico
provavelmente não andariam juntas no mundo dos vivos. O homem negro idoso com
infarto do miocárdio, a mãe branca de meia-idade com câncer de ovário, o jovem
hispânico que levou um tiro a poucos quarteirões do crematório. A morte os
levou até ali para uma espécie de reunião das Nações Unidas, uma discussão em
mesa redonda sobre a não existência.” (DOUGHTY, 2016, p. 28).
Um dos pontos que muito me agradou no livro e que não posso deixar de mencionar
é que a autora faz várias referências. Às vezes, é só uma menção a um nome ou
coisa pequena, mas mostra que ela tem bastante leitura. Particularmente, me
encantei ao ler a parte em que ela menciona A
pequena sereia, e mostra a diferença entre a versão da Disney e a original
de Hans Christian Andersen. O que isso tem a ver com morte? Construção histórico-social.
Quem conhece as duas versões entende do que Caitlin menciona e do que estou
falando. Desde que li o conto em 2015, fiquei um tanto cismada com essa
diferença gritante – e por isso, também, que me encantei lendo a fala dela –, porque
o que pela Disney é uma história de amor e com um final lindo e feliz, na
história do Andersen, não o é. Enquanto no conto se tem uma realidade mais
brutal, tem-se uma realidade mascarada no filme. Não há problema nisso, claro,
desde que não seja a única coisa com que as crianças tenham contato; como os
filmes da Disney, por exemplo, apesar de nos últimos anos estarem trazendo
questões e personagens um tanto diferentes. Isso implica na forma como a
criança verá o mundo; o que ela espera dele. Se esperará um conto de fadas, ou
saberá que nem sempre tudo tem seu final feliz. Ambos terminando com a morte.
“Expor uma criança pequena às
realidades do amor e da morte é bem menos perigoso do que expô-la à mentira do
final feliz.” (DOUGHTY, 2016, p. 149-150).
Por fim, não prolongando mais, um pequeno comentário quanto à edição que li. Primeiro que tem
fitinha! (Adoro isso). O livro é de capa dura, com várias folhas pretinhas
bonitinhas e até umas ilustrações no começo e no fim. Infelizmente, tirando o
fato de que achei a capa “cheia” demais e que podia ter um pouco menos de
informações e detalhes, encontrei muitos errinhos de revisão. O que me
decepcionou bastante mesmo, principalmente porque este é o quarto livro que
leio da editora e encontrei esse ‘problema’ em todos. O que é um tanto curioso, pois não possuem os mesmos
revisores – pelo que reparei nos nomes. Ainda espero ler um livro da DarkSide
sem erros. Claro, não digo que o livro precisa ser perfeito, e nem digo que
revisores o são. Pela minha pouca experiência revisando, sei que é normal
passar uma coisinha ou outra; mas quando os erros são muitos não dá para não se
decepcionar um pouco. Enfim, mesmo com isso, a leitura é muito válida e vale tanto a
pena que quase deveria ser obrigatória.
“Aceitar a morte não quer dizer que
você não vai ficar arrasado quando alguém que você ama morrer. Quer dizer que
você vai ser capaz de se concentrar na sua dor, sem o peso de questões
existenciais maiores como ‘Por que as pessoas morrem?’ e ‘Por que isso está
acontecendo comigo?’. A morte não está acontecendo com você. Está acontecendo
com todo mundo.” (DOUGHTY, 2016, p. 232).
DOUGHTY,
Caitlin. Confissões do crematório:
lições para toda a vida. Tradução de Regiane Winarski. Rio de Janeiro:
DarkSide, 2016. 256 p.
Oi, Paula.
ResponderExcluirAmei essa última citação.
Uma coisa que queria saber é se a autora fala da morte sob um viés religioso, essa questão de alma, vida após a morte e etc., ficaria muito tentada a ler se ela o fizesse.
Mesmo assim, acho interessante tratar do assunto sob essa perspectiva mais existencial, como a da última citação da sua resenha (que está incrível, por sinal).
Bjs!
Oi! =)
ExcluirHm, pior que não lembro muito se ela fala sobre isso. =\
Só que ela apresenta algumas visões de outras culturas (algumas meio bizarrinhas) sobre como lidam com a morte, seus rituais, crenças e coisas do tipo.
Mas, no final, como uma espécie de motivo pelo qual ela escreveu o livro, ela escreve:
"Não existe manual sobre a Arte de Morrer disponível na nossa sociedade, então decidi escrever o meu. É direcionado não só aos religiosos, mas também ao número crescente de ateus, agnósticos e vagamente 'espiritualizados' entre nós."
Talvez não tenha esse viés; mas mesmo assim é uma leitura interessante, e meio curiosa.
Boas leituras pra ti. ^^