quarta-feira, 12 de abril de 2017

Aos quatro ventos, de Ana Maria Machado

Para quem já costuma escrever, às vezes talvez nem pare para pensar tanto no assunto, mas para quem começa é sempre um mistério até encontrar o caminho e sua própria forma de escrita. A ambos, aliás, essa busca é incessante, pois todo texto é uma nova descoberta (de certa forma), sempre um algo novo a dizer. Dependendo do que se pretende, pelo gênero ou pela mensagem, tem-se que pensar em como ele será, quem o lerá. Se é um comentário, uma resenha, possui um público mais sério ou mais descontraído. Se pode escrever gírias, usar abreviações ou qualquer outro aspecto importante. Às vezes fazemos isso sem nem pensar, automaticamente. Numa conversa pelo WhatsApp, por exemplo, é um estilo; escrevendo um trabalho para a faculdade, é outro. E se for reparar em todos os pequenos detalhes, é uma observação que talvez não tenha fim. Porque a linguagem é isso, um infinito repleto de possibilidades.


Quando tomei Aos quatro ventos na mão, numa feira do livro em Criciúma, não imaginei que a história fosse valer tanto a pena; só queria conhecer a escrita de Ana Maria Machado. Um nome que vim a conhecer nas aulas de Literatura e que deixou um ar de que poderia ter muito mais a se conhecer dela. O livro ficou parado na prateleira por alguns meses até que, querendo ler um livro pequeno, o escolhi. Depois de O pianista (que virou favorito) não esperava grande coisa da próxima leitura; o que acabou sendo uma surpresa agradável. Principalmente porque, e isso pode sim ser preconceito, mas, convenhamos, algumas obras nos fazem pensar isso, é uma obra nacional. A única outra obra nacional que resenhei aqui, Pretérito Imperfeito, mostrou que esse preconceito tem que acabar, que não é só clássico nacional que vale a pena ser lido. Por sinal, não sei se A. M. M. é clássico, mas acho que não. Autora de mais de cem livros, de acordo com a orelha de Aos quatro ventos, ela já ganhou vários prêmios e mostrou que consegue criar uma história simples, mas repleta de pequenas informações que edificam a obra com uma contextualização impressionante.

"Incompetência é uma doença geral, que se alastrou por toda parte, de braços dados com a mediocridade que campeia e ocupa os postos de comando nos mais variados setores." (MACHADO, 2014, p. 111).

Datada da década de 90, a obra, aos poucos, traz elementos da época e alguns até mesmo anteriores, abordando questões como política, economia, e fatos históricos como a Ditadura e o acidente nuclear de Chernobyl de uma forma a dar à obra um momento histórico bem marcado, mas de modo sutil, sem ficar forçado ou superficial. Então, sim, a obra traz assuntos fortes, mas se engana se pensarem que a leitura é pesada. Bem pelo contrário. Ademais, outros elementos fazem com que saibamos que a história ocorre numa época mais delimitada – além da marcação de datas, claro –, como a menção à datilografia e ao uso de disquetes. Eu me lembro dos disquetes, parecia tão moderno...

Porém, mais do que a contextualização e a marcação de uma época, Aos quatro ventos é uma obra que representa a descoberta da escrita por um homem que não tinha ideia de quão prazeroso isso podia ser. Ao mesmo tempo, é também uma história de obsessão, de uma possível maldição e "de amores, que se manifestam pela paixão dos amantes, pela amizade que atravessa oceanos, pela palavra, pela vida e pela liberdade" (trecho da contracapa da obra). A história possui apenas dez capítulos (sim, bem pouquinho mesmo), e neles se intercalam dois narrados, sendo um em terceira pessoa, narrando os acontecimentos que envolvem a família de Guto, o protagonista, e a família da irmã de sua esposa Vanda (professora de Ciências), a Lélia (uma livreira ❤). São bem poucos personagens que realmente "aparecem" na história (só essas duas famílias, que são compostas, ambas, por um casal e um filho). Os outros personagens mencionados são decorrentes de lembranças, e em grande parte são decorrentes dos capítulos narrados em primeira pessoa por Guto, um empresário que descobre que escrever é quase que mágico. Por meio das reflexões dele surgem questões impressionantes, algumas das quais nunca havia parado para pensar, e apontam que a evolução da tecnologia pode, sim, ter influência na escrita  e isso na década de 90, imagina agora! Com internet, redes sociais, mil e uma coisinhas etc.

"Escrever em computador tem essas vantagens. É extremamente higiênico, não se guarda sujeira. Pode ser a escrita da dieta - corta gordura. Ou a escrita do acúmulo, evidente, se o freguês preferir ir acrescentando sem parar. Depende de quem usa.
    Será que alguém já estudou os efeitos do processador de textos na literatura contemporânea? Estudar mesmo, para valer. Se é que já existe uma certa distância para isso, talvez ainda seja prematuro.
     Mas é óbvio que existe uma relação íntima entre o desenvolvimento tecnológico e a evolução da linguagem artística. No caso da literatura, não tenho a menor ideia de como isso se processa, nunca tinha pensado nisso antes, nunca fui muito chegado nesse negócio de escrever." (p. 28).

Tudo isso começa, olha só, por causa da obsessão – quem quiser pode usar a palavra amor aqui – dele pela esposa. E, por alguns motivos, isso se torna um projeto de fim de ano da sua empresa, com todas aquelas questões ambientais, ecológicas etc., cujo foco é o beija-flor. O que explica esse bichinho fofinho na capa da obra (aliás, não achei a capa muito bonita não; bem mais simbólica que bonita), que acompanha os peixes-voadores (esses aparecem logo no primeiro capítulo e depois somem acho). Apesar de não ser um trabalho seu, ele acaba tomando a escrita do projeto para si, e, nisso, vem a sua descoberta viciante. Entusiasmado, começa, cada vez mais, a ocupar seu tempo com a escrita; inicialmente a mão, com os lápis, depois com o processador de textos (acho que é um computador, me corrijam, por favor). A cada dia que passa isso começa a absorvê-lo mais e mais. De início, sua esposa se encanta com a mudança, pois finalmente ela passou a ter uma certa liberdade que nem sabia que sentia falta. Seu marido possessivo, então, passou a deixá-la "de lado" para escrever.

"Tem que ter medo é de si mesmo. Do excesso de confiança. Do delírio de poder. Da obsessão." (p. 44).

Porém, conforme essa nova obsessão vai se alargando, Vanda começa a notar que não é uma obsessão saudável, que aos poucos o está fazendo se afastar do trabalho e dos amigos; da vida social num todo. Por um lado, pode-se notar como qualquer obsessão ou vício pode, se não controlado, se tornar isso, um empecilho, deixar a pessoa "cega". E pode ser uma das interpretações iniciais. Por outro lado, não dá para deixar de dizer que quem leva a escrita a sério, de verdade, pode acabar realmente tendo esses momentos de isolamento, de fuga completa do convívio social, e que escrever também serve como uma válvula de escape, um momento em que as emoções podem explodir em palavras escritas, ser, até mesmo, um alívio. As reflexões sobre escrita que podem ser feitas a partir da leitura dessa obra são várias e não convém mencionar tudo aqui (é muita coisa mesmo). Além disso, há outras coisas relacionadas que também aparecem, como ser leitor, e leitor de ficção.

"- É que ficção (principalmente quando é boa) dá às pessoas essa oportunidade única que é a de viver outras vidas - respondeu Lélia. - Estar em outras situações, outros ambientes, enfrentar outros dilemas que jamais se apresentariam iguais na própria vida do leitor, tomar decisões éticas cruciais, julgar os diversos lados de uma questão. E em segredo, sem testemunhas, com toda a liberdade para imaginar como quiser." (p. 115).

Enfim, apesar de toda a maravilha da obra, senti que algumas partes ficaram meio fracas, mas nada que faça a leitura não valer a pena; vale sim, recomendo! É uma obra rápida de ler, dois dias e puf, acabou. Gostaria de comentar sobre o final, mas talvez seja spoiler demais; refere-se a tal maldição ligada ao passado que a contracapa menciona. Quem sabe, com a leitura da obra, não descubram que maldição é essa? Fiquei bem surpresa, embora não sei se gostei ou não disso...


"Hoje eu sei que os homens são só uma poeira nesta casca do planeta, 
cisco que vai de um lado para o outro e mal arranha a superfície." (p. 31).

MACHADO, Ana Maria.  Aos quatro ventos. 3. ed. Rio de Janeiro: Obejtiva, 2014. 146 p.

4 comentários:

  1. Oi, Paula.
    Preciso dizer que fiquei apaixonada pela introdução desse texto (talvez por estar escrevendo antes de começar a lê-lo) e não posso concordar mais com tudo que você escreveu sobre o hábito da escrita.

    Embora já tenhamos conversado um pouco com você sobre esse livro, acho que ainda tenho algumas impressões a mais sobre essa resenha. Por exemplo: muito se fala sobre hábito de leitura na ficção, mas nunca vejo falar sobre a escrita. E ainda mais interessante é refletir como a nossa escrita foi influenciada pelo avanço da tecnologia.

    Por fim, mesmo achando legais essas temáticas, confesso que não tenho muito interessante conhecer essa autora.

    Beijinhos, Hel.
    Leituras & Gatices

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    1. Oi, Helena!

      Fico feliz por isso. *-*
      Tenho que dizer que li e reli essa primeira parte do teu comentário várias vezes desde que o postasse (pois é, só agora que vim responder... >.< Mas eu não gosto de responder pelo celular, então sempre espero estar na frente do computador pra isso). Aliás, fiquei em dúvida sobre essa segunda parte do primeiro parágrafo. Na primeira vez que li fiquei pensando no que discordavas de mim, no que eu tinha dito equivocadamente para pensar a respeito e tudo o mais. E depois, relendo o comentário pensei que na verdade concordas comigo, isso? Vou supor que pode ser isso, considerando a posição do "mais" na frase (isso é sintaxe? fiquei até na dúvida agora...) e a primeira parte do parágrafo. Se não for, me corrija, por favor. =x

      Olha, é verdade. Raramente vejo algo sobre escrita na ficção. No momento não consigo pensar em outro livro que fale disso além de "Aos quatro ventos". Acho que prestarei mais atenção nisso daqui em diante.
      Pois é! Essa influência realmente é curiosa, não? *-* Essa facilidade que vem a ajudar, mas ao mesmo tempo facilita a produção de textos às vezes sem critério nenhum. Pode-se escrever sem receio de acabar o papel ou cansar muito a mão; e o ato de 'deletar' que simplesmente apaga tudo, não mais como o papel que fica marcado pelo que já foi escrito, mesmo que tenha sido a lápis (se a pessoa escreve um pouco 'forte', ao menos). É muito fácil agora não pensar muito antes de escrever, porque é rápido e pode-se facilmente apagar o que foi escrito. Enfim, agora eu que estou escrevendo demais. =s

      Acho que entendo. Apesar de ter gostado muito da obra, tirando as reflexões eu não sei se te recomendaria... Trágico.
      Bom, sempre se tem livros melhores para se ler, não é? ;)
      Enfim, obrigada pelo comentário. ^^

      Abraços.
      Paula H.

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  2. Oi Paula!

    Que blog fofo. Não sei se você ativou a notificação no Estante Diagonal. Então, achei melhor vir aqui esclarecer sua dúvida. A comparação que fiz do Murakami foi exatamente a conclusão que você fez. De fato, os autores não têm nada a ver em termos de escrita, mas acredito que em termos de renome, Murakami seja tão reconhecido internacionalmente como o Paulo Coelho é. Eu quis tentar mostrar a dimensão da literatura japonesa, já que não é algo que muitas pessoas tem acesso ou conhecem e, consequentemente, podem não dar muito valor. Desculpa se de alguma forma isso possa ter sido uma comparação chula para uma leitora do Murakami, mas foi a primeira vez que li o autor e pesquisando, eu tive essa impressão dele, que ele era um "Paulo Coelho japonês" em termos de alcance internacional.

    beijos
    estantediagonal.com.br
    psicosedanina.com.br

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    1. Oi, Nina! =)

      Fiquei feliz com a sua preocupação de vir esclarecer isso aqui; achei bonitinho da tua parte. Eu tinha ativado a notificação sim, estava curiosa para saber a resposta. E fico feliz em saber que é uma comparação só pela questão de renome e não em questão de estilo, escrita e tal (até por ser aquela uma das primeiras obras do Murakami, e poderia ter um estilo diferente, não sei...). De fato Murakami é tão conhecido quanto Paulo Coelho o é por aqui. O alcance que Murakami tem em diversos países, na verdade, é bem grande; justamente porque as obras dele, mesmo sendo japonesas e tendo características típicas de lá, podem ser compreendidas mesmo sem conhecer a cultura japonesa. Bom, o fato de ter uma escrita simples e de abordar o cotidiano de uma forma um tanto melancólica também contribui, claro.
      Bem, peço desculpas também por não ter entendido a comparação e feito o comentário, como não estava especificado fiquei com certo receio.

      Obrigada pela atenção e pelo comentário. =)
      Abraços.

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