segunda-feira, 25 de junho de 2018

How much land does a man need?, de Leo Tolstoy


Faz uns dois ou três meses que comprei o box de pequenos clássicos da Penguin Books. São 80 livros entre 50 e 64 páginas com clássicos de diversas nacionalidades; inglês, japonês, russo, chinês, francês, latim, grego etc. Boa parte dos autores são bem conhecidos, outros, eu nunca havia visto o nome antes. O que considero uma boa oportunidade de conhecê-los enquanto pratico minha leitura em língua inglesa. Porque, sim, todos os livros são em inglês. E não, não sou fluente, nem chego perto disso. Meu objetivo é tentar voltar a ler utilizando o inglês como motivação (já que inclusive estou fazendo um curso para melhorar minha habilidade irrisória de conversação). A quem interesse, ler ajuda, e muito, a compreensão de um outro idioma. Mesmo que se comece com uma frase aqui, outra ali, até chegar a ler uma página inteira, um conto inteiro; o interessante é optar por um desenvolvimento gradual da dificuldade de leitura. Eu, por exemplo, comecei com mangás e frases no Instagram. É tudo uma questão de prática. Quanto ao box, devo dizer que o nível de dificuldade de leitura varia de um livro para o outro, o que já era esperado de obras de diferentes séculos/autores. 

Esse livro do Tolstoy foi a minha terceira leitura, e devo dizer que, mesmo que sejam livros pequenos, é notável o quanto ler em inglês vai ficando mais fácil a cada livro lido (mesmo que ainda não consiga ler muito sem um dicionário por perto). Do autor, eu já havia lido Anna Kariênina, no ano passado, e A morte de Ivan Ilitch. E, apesar de já ter lido alguns livros russos, tanto dele quanto de Dostoiésvki e Gógol, não consegui não ficar surpresa com o desenvolvimento desse pequeno livro, principalmente pela segunda história. O motivo é uma espécie de spoiler...

A primeira história, aliás, que dá nome ao livro, How much land does a man need? ("De quanta terra um homem precisa?", ou algo nesse estilo), não é menos interessante. A premissa é simples: o devil (demônio) ouve duas mulheres (uma da cidade e a outra do campo) conversando sobre seus maridos, problemas e felicidade, até que o marido de uma delas se intromete na conversa e diz que se tivesse terra suficiente, nem o devil poderia impedi-lo de ser feliz. Certamente, o devil decide "brincar" com esse homem. E no decorrer da história esse mesmo homem vai conquistando mais e mais terra. Porém, nunca se satisfazendo com o que já tinha, sempre almejando mais terras, que fossem mais férteis que as que ele já tinha. O que lembra aquele ditado que diz que a grama do vizinho é sempre mais verde. Aos nossos olhos, eu acrescentaria. Só que, claro, o protagonista não enxergava isso e muito menos decidia se estabelecer num canto só. A partir daí, já dá para imaginar como terminará.

"If I stopped now, after coming all this way - well, they'd call me an idiot!" (p. 20) [1]

Já a segunda história, What men live by (algo como "pelo que os homens vivem")que me surpreendeu um pouco mais (talvez por eu esperar algo diferente), é um pouco mais religiosa, abordando a questão do pecado, da compaixão e da humanidade em geral. O protagonista, um sapateiro pobre, mal consegue sustentar sua família, sequer tendo dinheiro para comprar casacos para o inverno. Após conseguir juntar certa quantia, resolve tentar comprar uma pele para se aquecerem, o que, infelizmente, não consegue. Na volta para casa, pensando no que faria para que pudessem sobreviver a outro inverno, se depara com um homem pelado escorado numa capela. Seu primeiro impulso é se afastar rapidamente. Afinal, o que um homem estaria fazendo ali, naquele frio, sem roupa? E o que ele, tão pobre, poderia fazer? Porém, depois acaba retornando e ajudando o homem, dividindo com ele o pouco que tinha de roupa e o levando para sua casa. O homem se recusa a dizer qualquer coisa sobre si mesmo, apenas dizendo seu nome, Mikhail. 

Após um desentendimento breve do casal, eles deixam o homem morar com eles, desde que ele também trabalhasse pelo seu sustento. Mikhail aprende a profissão de sapateiro em poucos dias e com o tempo eles prosperam e sua fama se espalha pela região. O tempo passa, e eles nada descobrem do homem, até que dois fatos fazem com que essa situação se altere. ~spoiler~

"Please don't be angry, Matryona, it's sinful. Don't forget that we must all die one day." (p. 33) [2]

Essa história tem um teor maior de ensinamento (o que pode não ser tão motivador), mas não deixa de ser uma leitura agradável e interessante. Justamente porque Tolstoy tem essa capacidade de, com uma linguagem um tanto simples, traçar a essência humana. De explanar a vontade humana, suas motivações, a importância que se dá a coisas desnecessárias e o quanto podemos ser cegos ao que mais nos é valioso. Seus personagens bem construídos, mesmo em histórias curtas, trazem essa ideia de verossimilhança, sendo fácil pensar que alguém assim realmente poderia existir. São leituras agradáveis e, embora não saiba se essas histórias foram traduzidas, sem dúvida vale a pena lê-las.


TOLSTOY, Leo. How much land does a man need? Translated by Ronald Wilks. UK: Penguin Books, 2015. 56 p. 

Minhas meras tentativas de tradução das citações acima:
[1] "Se eu parasse agora, depois de vir todo esse caminho - bem, eles me chamariam de idiota!"
[2] "Por favor não fique brava, Matryona, isso é pecaminoso. Não se esqueça que todos nós morreremos um dia."

quarta-feira, 13 de junho de 2018

The Old Man of the Moon, de Shen Fu


"All the thing are like spring dreams, passing with no trace." (p. 1) [1]

Não parece fazer muito sentido tecer um comentário sobre uma obra em inglês que, até onde sei, não possui tradução em português. Muito menos considerando ser essa obra em questão tão curta, nem 60 páginas, e tão, aparentemente, "sem sal". Por outro lado, talvez faça sentido deixar registrada a possibilidade de conhecer mais sobre obras que não temos acesso. Conhecemos muitas obras sem sequer lê-las, não porque não há em português, mas por mil e um outros motivos. Seja falta de tempo, seja falta de interesse pela obra. Não parece tão errado, pensando nisso, comentar em português sobre algo em inglês...

The Old Man of the Moon é exatamente um desses livros que parecem não ter graça nenhuma. Não possui ação, nenhum evento chocante, nenhuma história tão trágica ou personagens que tenham passados por inúmeras dificuldades. Essa é uma história de um homem e de sua paixão profunda por sua esposa; é também a história do casamento deles. Nessas poucas páginas, ficamos sabendo de como eles se conheceram, como era o relacionamento deles, descobrimos que eles tiveram filhos - isso na verdade achei surpreendente, porque do nada o narrador menciona dois filhos, um deles perto dos 12 ou 14 anos! - e que ela tentou arranjar uma concubina para ele. Dizer mais que isso é um spoiler de uma história tão curta.

Quanto ao título, que traduzo mais ou menos por "O velho da lua", é uma referência a um espírito apreciado por unir pessoas. O casal protagonista, que, aliás, adora conversas sobre literatura, poesia e afins, faz adorações ao tal espírito, tanto agradecendo por estarem juntos quanto por pedir para que possam estar juntos numa próxima vida. O curioso é que o autor fala da felicidade deles, mas também não deseja o mesmo para ninguém. Porque, apesar de o personagem ter sido feliz, ele também sofreu bastante (spoilers).

"People say that marriages are arranged by the 'Old Man of the Moon'", said Yun. "He has already pulled us together in this life, and in the next life we will have to depend on him too." (p. 25) [2]

No fim, parece que a mensagem é para que busquemos uma felicidade que não dependa plenamente dos outros. E embora possa parecer estranho se pensar que a história em si é sobre um casal apaixonado, faz sentido se pararmos para pensar na reflexão que o autor nos propõe. Será que tomamos responsabilidade e agimos por nossa própria felicidade? Ou será que deixamos os sentimentos nos levarem e nos arrebentar por meio de paixões com finais infelizes? "Onde" deixamos nossa felicidade? 

Pode não ser bem o que ele quis dizer (estava em inglês e é uma interpretação pessoal), mas não deixou de me fazer pensar a respeito. 

Quanto à obra, resta dizer que ela passa há séculos atrás (foi escrita em 1809), numa época em que as mulheres ainda não tinham permissão para muitas coisas do dia a dia. Não podiam fazer parte de todo dever social (como reuniões), viajar, ir aonde quisessem etc. Então ler essa obra nos dias de hoje é também uma forma de lembrar que os tempos mudam, conceitos, valores e pensamentos que parecem enraizados podem gradualmente ser alterados. Mesmo que pareça que nada mude, às vezes pode ser tão sutil que só notamos quando a mudança já percorreu quilômetros; afinal, é aquela ideia: nunca nos banhamos no mesmo rio duas vezes (Heráclito, né?).

Por fim, tenho que dizer que meu "nível" de leitura em inglês ainda não é grande coisa; tive bastante dificuldade lendo a obra, mesmo sendo curtinha e tendo, aparentemente, uma linguagem mais simples (ao menos comparado com outro livro que "tentei" ler). Não posso dizer que amei a obra, mas sem dúvida me fez refletir um bocado. Em tempos de poucas leituras, a considerei extremamente válida. 

"I could never give a complete list of all the talented writers there have been. 
Besides, which one you like depends upon which one you feel in sympathy with." (p. 10) [3]


FU, Shen. The old man of the moon. Translated by Leonard Pratt e Chiang Su-hui. UK: Penguin Classics, 2015. 60 p. 

Minhas meras tentativas de tradução das citações acima:
[1] "Todas as coisas são como sonhos primaveris, que passam sem deixar rastro."
[2] "As pessoas dizem que os casamentos são arranjados pelo 'Velho da Lua'", disse Yun. "Ele já nos juntou nesta vida, e na próxima vida nós teremos que depender dele também."
[3] "Eu nunca poderia dar uma lista completa de todos os escritores talentosos que existem. E também, de qual você vai gostar depende de com qual você sente simpatia."

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Um experimento amoroso, de Hilary Mantel

Em meus discursos pode chegar a soar repetitivo minha menção de como acho as pessoas incríveis. Por suas ações, seus pequenos gestos, palavras, olhares e sorrisos, por suas visões/perspectivas curiosas do mundo e, também, entre outras coisas, pela importância que têm. Nem tudo é feito conscientemente; às vezes sequer sabemos a importância ou a diferença que fazemos até que nos digam. Situação igual seja para algo positivo seja para algo negativo. Seja um ato simples, um cumprimento, seja algo mais 'denso', como um motivo para alguém seguir em frente. Seja como for, acontece, porém, que nem sempre conseguimos ver esse lado incrível das pessoas, porque não as conhecemos. Sequer conhecemos a nós mesmos, às vezes. Mesmo convivendo por anos e anos – ou a vida toda. Algumas pessoas, fortes, densas, costumam causar um impacto maior na vida alheia, às vezes na forma de um grande alívio e auxílio, às vezes numa forma confusa de sufoco, que se mistura com sensações por vezes ainda mais confusas e difíceis de explicar como raiva, inveja e desprezo. A protagonista de Um experimento amoroso, a jovem Carmel, acaba sendo influenciada por uma pessoa assim. Mesmo na ausência, a presença que ela teve trouxera uma perspectiva diferente no decorrer de seus anos escolares, uma visão diferenciada, que lhe impunha sensações diversas, de dever, de companheirismo e, num misto de distanciamento, devido a seu modo cada vez mais independente e "regrado", de confusão, causada pelos ditos de sua mãe, além de sensações de repulsa, nojo e raiva. Sem saber, via-se sufocada, queria distância e não lhe permitia tal 'regalia'. E apesar de esta ser a parte que a mim mais interessou na obra inteira, por incrível que pareça, não é tratada como "foco".



Numa síntese, a obra conta a história de Carmel, Karina e Julianne, três moças distintas que acabam por estudar juntas no Holy Redeemer – um colégio prestigiado – e optam pelo mesmo pensionato durante suas respectivas graduações. Não é, porém, uma história de amizade que perdura no decorrer dos anos, mas sim relacionamentos que surgem, se afastam, e eventualmente se reencontram, sem jamais voltar a ser como já foram. Durante a leitura, próxima à metade da história, já comecei a me questionar sobre o que a orelha me fez esperar da obra. Parecia um pouco distinto até ali, pois não há um foco no "romance" ou tanto na liberdade que possuem, embora isso muito se contraste com a infância da protagonista, de família católica muito religiosa. A liberdade, os relacionamentos abertos e os perigos disso, que a contracapa parece apontar, são, na verdade, parte integrante principalmente da segunda metade em diante, quando o foco da narrativa volta-se ao momento em que as personagens estão na universidade, no qual há mais personagens e uma visão mais clara do início da vida adulta das garotas do pensionato. Bem, se separar a obra em duas partes, eu gostei muito mais da primeira, apesar de que mesmo esta só possui seu desfecho nos últimos capítulos, que integrariam a segunda parte. 

“Talvez eu devesse lamentar minha juventude desperdiçada, ter pena de mim mesma por ter-me divertido tão pouco. Mas carpe diem é um sentimento vazio, agora que todos nós vivemos tanto tempo.” (p. 130).

Em grande parte até a metade da obra, Carmel nos apresenta aos poucos sobre sua infância, como conheceu Karina – aos quatro anos de idade, sendo ela basicamente sua vizinha  e Julianne – já por volta dos dez anos, no Holy Redeemer – e como é ou era o relacionamento entre elas. Também demonstra um pouco sobre sua inserção na escola, seu contínuo descobrimento da situação de Karina e a imensa influência que ela fazia sobre si – ainda que parte disso tenha sido "imposto" pela mãe de Carmel, que de algum modo se impressionava com a pequena Karina, em parte devido à situação da família dela. Enquanto Carmel é vista como uma criança que não necessita fazer nada na casa ou nos deveres "por ter quem o faça", Karina é o oposto: tendo os pais trabalhando em muitos turnos e não parando muito tempo em casa, todo o serviço é deixado para ela, que desde pequena aprende a "se virar" e cuidar de tudo sozinha, inclusive com as compras do mercado. Isso, contudo, não a impede de ser uma criança estudiosa, inteligente; de certo modo, isso a faz criar uma certa dependência de si mesma, certa confiança e, ao mesmo tempo, um denso pessimismo. Por outro lado, enquanto a mãe da protagonista quase que inveja/admira aquela criança tão responsável e esperta, Carmel não faz o mesmo, dado que sente uma influência diferente, por vezes querendo se distanciar desta. Em posições diferentes, ambas são submetidas a seguir o que lhes é imposto, e ambas sentem os impactos disto, embora a autora não exponha a nós, leitores, a visão da Karina, a vida que ela levou e como a encarou. O pouco que sabemos é da visão e compreensão da narradora, que pouco sabia da densa vida de sua 'vizinha'. Possível spoiler: mesmo quando é mencionada a situação da mãe de Karina, que aparentemente adoeceu e se tornou incapaz de trabalhar, não é dito o que de fato ela tem ou como isso realmente impactou Karina.

“Agora que estávamos estudando o sistema feudal, eu estava numa posição melhor para compreender a perspectiva de Karina sobre a vida. Ela acreditava em hierarquia e nível, e tinha uma profunda descrença na igualdade dos homens. Karina acreditava em autopreservação através de artimanhas, em poupar o futuro, através da conservação de seus esforços e de nunca desperdiçar o fôlego. Ela não acreditava em justiça, ou pelo menos agia como se a justiça fosse um luxo; ela não acreditava em manifestar suas opiniões. Karina era lenta e persistente em seus esforços e punha mãos à obra.” (p. 121).

Aos poucos, quando ambas passam a estudar em Holy Redeemer, Carmel começa a se distanciar de Karina. Nesse distanciamento tem-se só pequenos fragmentos do que Karina foi se tornando; forte – nos dois sentidos que essa palavra pode ter aqui – quieta, isolada etc. Contudo, essa distância – que não era física, pois mesmo após se formarem na escola passaram a morar no mesmo pensionato – pesava, numa densidade que só é compreendida a partir das vidas que elas levaram, do (des)conhecimento que uma tem da outra. A isso é interessante considerar a época em que a história se passa, durante a década de 60 e início da década de 70. Uma época que ao mesmo tempo que permitia liberdades ainda esbanjava uma visão religiosa, conservadora e em mudança; passando-se na Inglaterra e em Londres, vê-se também uma questão cultural, embora numa proporção bem menor. Um ponto abordado na obra é a crescente utilização da pílula anticoncepcional pelas moças; o que lhes dá uma liberdade que, se não há cuidado, causaria-lhes grandes problemas. Nisso, é claro, há um pequeno debate sobre o aborto. Isto, porém, é um foco do que separaria como a segunda parte da obra.

“E apesar disso, a proximidade com Karina, ver sua figura andando com passos pesados em meio ao tráfego e à fuligem de Londres, a presença de seu nome em nossas bocas – todas essas coisas me levavam desamparada de volta ao passado, as recordações me puxando com a força e a firmeza lisa de uma corrente de aço, cada elo duro e reluzente e obstinado, de maneira que fui arrancada para fora de meu corpo frágil, pálido, de dezoito anos, e forçada a viver, como vivo hoje enquanto escrevo, dentro de minha pessoa aos dez anos de idade, a pele rosada mas rígida de medo, no ônibus a caminho do exame de admissão para o Holy Redeemer.” (p. 89).

A história toda é narrada muitos anos após os acontecimentos citados, e sabe-se disso logo na primeira página, em que Carmel comenta sobre uma notícia de jornal sobre Julia, sua companheira de quarto no pensionato, uma psicoterapeuta, que tratava de garotas com anorexia. Aliás, essa narrativa, que é um olhar para o passado, tendo uma visão do futuro, já se podendo pensar e refletir sobre o ocorrido, sempre me cativa, e com esta obra não foi diferente. Já havia lido algo da autora, O gigante O'Brien [The Giant, O'Brien – 1998], que foi publicado poucos anos depois de Um experimento amoroso [An Experiment in Love – 1995], mas sem dúvidas há grandes distinções entre elas. Diria que em Um experimento amoroso a escrita é mais elaborada, parece ter um ar mais fluido, complexo, que traça a história com nós mais caprichados e enfeitados, esboçando um retrato da vida das jovens, ainda que deixando muito a ser dito, muito nas entrelinhas, por assim dizer. Não que a outra obra não seja boa, é bastante interessante. Porém, há todo um ar diferente – o eixo da obra é distinto –, no qual o protagonista mescla uma imagem intelectual com uma objetificação, num enredo também pesado e distinto, cujo foco é menos o protagonista que a atmosfera do tempo em que se passa, dos personagens além dele. Nesta há um teor diferenciado e que me atraiu mais, as (possíveis) protagonistas, embora não mais densas, são mais detalhadas e exploradas. Como O'Brien, Karina é uma personagem que me interessou bastante, mas ambos, apesar de importantes, são retratados como que a distância, um reflexo do que são. Apesar desse detalhe, não posso deixar de mencionar como a narrativa de Mantel é fluida, mas pesada, com certo ar melancólico e vago, com detalhes que parecem não ter importância, mas que unidos esboçam bem a cena, as personagens e suas ações, e proporcionam, ao todo, uma obra impressionante. Certamente poderia ter sido mais explorada em alguns aspectos, e realmente senti falta de compreender melhor o que aconteceu com a Karina em todos aqueles anos. Mas este é um dos detalhes que, às vezes, faz com que a narrativa em primeira pessoa nos deixe certo vazio: não podes saber o que o narrador não sabe.

“Uma vez que se começa a lembrar – não é assim? – uma imagem dá origem a uma outra; elas correm em sua cabeça para todas as direções, animais fugitivos desentocados de seus abrigos. A memória não é um carretel, não é um filme que se possa rodar para trás e para a frente de acordo com a vontade: é aquele relance de pele surpreendida, o escorregar de uma seda entre os dedos, a textura duplicada de cabelo ou osso. É uma imagem, borrando, apanhada em movimento: como numa de minhas fotografias de família, antes que as câmeras se tornassem tão simples e seguras que qualquer idiota poderia capturar o momento.” (p. 16).

Numa espécie de vai e vem sobre fatos da época da universidade e da época da escola, vê-se sobre o que, de fato, é a história. Num primeiro momento, incluindo nisso a força da passagem do tempo e das mudanças decorrentes disso, tem-se a relação de Karina e Carmel e suas respectivas mães. Em relação às meninas, ainda entra o âmbito escolar, os estudos e a pressão de não fracassar (principalmente no que se refere ao Holy Redeemer). Por outro lado, nesse ínterim, tem-se a relação de Carmel com a própria mãe, religiosa e exigente. Apesar de obediente, Carmel aparentemente não tinha uma relação muito próxima com ela; o que parece ser reforçado com as constantes menções de sua mãe sobre Karina e sua família – cuja história é um mistério. Já aqui vê-se relacionamentos diferentes, amores diferentes, familiares. O outro lado da história é visto já mais próximo ao olhar do tempo do pensionato, em que o convívio naquela espécie de liberdade proporciona dificuldades e relacionamentos diversos – além de que se vê uma distinção inclusive na condição financeira de cada uma e do que o pensionato, aparentemente precário, lhes oferece. A dependência da família se torna algo distante fisicamente, embora a pressão de cada costume familiar continue pesando sobre as moças. Em reflexões breves, mas fortes, sobre a liberdade, o trabalho, a juventude e a vida num todo, é interessante ver as outras experiências que cada uma das moças retira dali. Um dos exemplos é a visão de que muitas ali, apesar de estudarem muito, no fim só queriam encontrar um marido; uma revolta sobre isso num determinado capítulo faz uma divisória dos pensamentos da época – embora ainda presente nos dias de hoje –, e não é surpreendente a palavra feminismo surgir umas duas vezes no decorrer da obra. Porque a narradora vê esses dois lados da moeda, e com uma visão já de seu futuro, expõe sua discordância com algumas das moças com quem conviveu. Enfim, toda a obra abarca diferentes visões do amor e ambos os lados que eles englobam. O que me fez pensar que o título, embora abarque bem certa parte da obra e faça sentido, não abrange o que poderia ser sua essência. Porque esse experimento, mesmo que envolva o amor, em suas diferentes formas, não é amoroso, num todo, porque é também sofrido, marcado por desentendimentos, mágoas e distâncias. Não é um romance água com açúcar, nem mesmo um livro leve. Pode ser experimento de ou no amor, mas não é amoroso – que querendo ou não é muito mais associado à ternura e ao afeto do que à ideia de ser relativo ao amor num todo.

“Agora, não gostaria que pensassem que esta é uma história sobre anorexia. [...] Digamos então que é uma história a respeito de apetite: o apetite em seus vários aspectos e dimensões, suas perversões e decadência, suas estranhas inversões e recusas. Isto é o suficiente por enquanto.” (p. 66).

Num geral, não posso dizer que a edição seja ruim, mesmo não tendo gostado do título, da capa e da contracapa – gostei da orelha, ao menos. Talvez o problema tenha sido apenas minha expectativa ou a minha visão da história que não fechou com o foco que deram; talvez eu não tenha focado no que eles consideraram principal. Falha minha, fazer o quê... Quanto à edição, ainda, só tenho que comentar que vi alguns poucos errinhos de revisão, mas que não chegam realmente a incomodar. Quanto à história, tenho que concordar em parte com a fala da contracapa, que diz que lamentaremos a obra ter acabado tão rápido. Acontece, é claro, que isso ocorre do fato de o final ter um desfecho muito rápido, num ritmo um tanto diferente do que a história conduz. Isso é, dos dez capítulos, apenas no último tem-se o que se pode chamar de clímax e desfecho, ambos no mesmo capítulo. É um acontecimento um tanto chocante, o que faz com que, sim, terminou rápido demais! Porque poderia muito bem ter explorado mais aquele acontecimento, o que veio depois, ou ao menos algumas reflexões a mais do tal incidente – comentar mais disso seria spoiler. Mesmo assim, a obra é encantadora. Enfim, apesar de tudo isso, não sei se recomendo... Ainda que seja um livro impressionante, minha recomendação fica apenas àqueles que se interessam em conhecer alguma obra da autora ou que ficaram curiosos pela obra.

“Estava na hora de fazer planos para o futuro; eu oscilava entre pensar que poderia fazer qualquer coisa com minha vida e que não poderia fazer nada.” (p. 137).

MANTEL, Hilary. Um experimento amoroso. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Record, 1999. 240 p.