Lembro-me sempre de uma frase que
ouvi no Ensino Médio, algo que até fora mencionado em uma aula do curso de
Letras, que seria: “o trabalho dignifica o homem”. E eis que há toda uma
reflexão por trás, que não é aqui meu propósito. A questão é que a relacionei com algo
que li em Balzac, e proponho-me a pensar sobre isso. Numa sociedade como a nossa,
trabalhar é não apenas necessário, como é uma marca de que fazemos parte dessa
sociedade. As pessoas voltadas ao ócio não costumam ser bem vistas. Sejam as
que não trabalham por motivos diversos,
sejam as que não possuem oportunidade ou
mesmo as preguiçosas. Mas pensemos nas que trabalham, de fato. Cada vez mais o
tempo do dia a dia é dedicado a esse serviço, cuja renda permite
que a pessoa consiga se manter, viver "bem", comprar o que precisa etc. O
trabalho, em algumas situações, faz a pessoa levantar cedo, mal aproveitar o
café da manhã e ir apressada para trabalhar. Lá, gasta suas forças físicas e mentais
para que mantenha o bom rendimento e continue empregada. Então, ao chegar a
casa... O cansaço, o esgotamento de ambas as partes da pessoa, costuma fazê-la
ajeitar alguns pormenores que lhe restavam na casa e ir dormir. Sem dedicar
tempo a si mesma. Quem já leu Admirável Mundo Novo poderá se lembrar da adição
de carga horária e de suprimento de soma aos de classes mais baixas, pois o
tempo livre desgasta o indivíduo que não conhece a si mesmo. Ou, às vezes, por
começar a conhecer-se. E o que quero pensar com isso tudo é: não é o trabalho
incessante um rompimento com nós mesmos? E, não obstante, com o tempo, como
descobrimos quem somos?
* * * * * * * * * * * * * * * * * *
“O nome de Honoré de Balzac, meus senhores, há de fundir-se no rasto luminoso que nossa época deixará no futuro. E ele era um dos primeiros entre os maiores, um dos mais altos entre os melhores.”
Victor
Hugo (1850)*
A trilogia História dos Treze, de Honoré de Balzac,
é constituída por: Ferragus; A duquesa de Langeais; e A menina dos olhos de ouro. Nas três
histórias têm-se o foco em poucos personagens, dado que o escritor, embora
coloque bastantes personagens para histórias maiores, possui uma narrativa mais
descritiva e/ou reflexiva sobre a vida parisiense, a cidade e seus habitantes.
Já escrevi textos para as primeiras duas histórias, que mais se aproximam de
comentários/reflexões do que resenhas propriamente ditas. Desta vez, ao comentar a parte final da
obra, procurarei, também, fazer um apanhado geral do livro, retomando pontos
comentados anteriormente.
Um primeiro
comentário se atém a observar que personagens mencionados nas duas histórias
anteriores do livro, como Ferragus e Ronquerolles, aparecem brevemente em A menina dos olhos de ouro. Isso, além
de unir as histórias no mesmo universo, traz o carácter misterioso sobre a
sociedade dos Treze Devoradores, da qual não temos conhecimentos além dos
poucos personagens e situações que aparecem na trilogia. E, até onde sei, não há outras histórias
desses integrantes, pois há a informação, dada pelo próprio Balzac, de que ter
essas três histórias contadas já é o bastante, sendo deixadas as outras às
sombras como se permanece o próprio grupo dos Devoradores em si. Em cada um dos
romances, temos breves visões sobre o que essa sociedade é capaz de fazer; apesar de
ser um elemento essencial para as histórias, tem-se esse grupo secreto apenas
como plano de fundo.
Na última
história da trilogia, escrita entre 1834 e 1835, vê-se o jovem Henri de Marsay
como protagonista; um rapaz inteligente, repleto de conhecimentos e qualidades
que o fazem quase se sentir acima dos demais, além de possuir uma desconfiança
geral com todos, como se percebe com seu "amigo"
Paul. De Marsay, pelos indícios no decorrer do romance e por seu aparecimento
em A duquesa de Langeais, é
integrante dos Treze Devoradores, motivo pelo qual o faz se sentir capaz de
tudo, aliás. Essa posição em que se encontra acaba por torná-lo, além de um
tanto indiferente quanto aos demais, ávido a emoções além das cotidianas; eis
que repara numa moça de olhos dourados que viu passar numa rua que frequentava,
sempre acompanhada por uma aia que a apressava para sair logo das ruas. É essa
a moça que dá título ao romance, tendo sido apelidada de menina dos olhos de ouro. Encontrando-se encantado e mesmo
apaixonado pela moça, Henri busca encontrá-la e poder dirigir-lhe a palavra.
Para isso há todo um plano para chegar a esse objetivo; eis que o consegue, e
descobre que a moça demonstra uma ignorância – ou seria ingenuidade? – quanto à
vida em sociedade, além de que ela lhe oferece todos os prazeres que lhe puder
dar, enquanto que lhe pede, temerosa, para que a livre da situação em que se
encontra.
Indo além
desse resumo poderia-se dizer que perderia boa parte da graça da leitura, pois,
apesar de integrante da trilogia de Balzac e ainda ter toda a narrativa
cativante do escritor, parece-me que esta é a mais fraca das três. A história
possui a contextualização tão intrigante do autor, a narrativa bem descrita e
reflexões pertinentes. Porém, dá para perceber que há uma queda, uma espécie de
rapidez na conclusão da história, não pela narrativa, que não me pareceu com
aquele tom típico de quando os autores tendem a terminar com pressa, mas que,
se comparada às demais, nota-se que houve menos reflexões da metade em diante,
menos desenvolvimento e explicações e/ou reflexões a respeito. Parece-me que
essa história poderia ser um pouco mais prolongada, pois a ideia de romance noir, como diz a introdução, parece ter
retirado parte da essência do desenvolvimento. O desfecho final, por exemplo,
ficou tão vago quanto um conto mal terminado. É uma história que poderia ter
mais cem páginas e não seria exaustiva, pois assunto não lhe faltaria – ao
menos é o que me parece. Ao mesmo tempo, viria a seguinte questão: mas será que
se houvesse essa continuação, esse maior desenvolvimento, não se tornaria ruim?
Como muitos livros que recebem continuação quando muito bem sobreviveriam
melhor sendo uma obra única, sem essa explicação adicional? Quem sabe... Ainda
permanece a sensação de que faltou algo.
“Precursor de
todos os grandes romancistas modernos, Balzac revelou os intestinos da
sociedade de sua época e descreveu para sempre as profundezas da alma humana.
Ousou o tempo todo, em especial neste romance, quando aborda uma tórrida paixão
entre duas mulheres.” (BALZAC, 2009, p. 327, introdução à história A menina dos olhos de ouro).
Talvez tenha
tido uma leitura superficial, o que é uma resposta, mas, ao ler o trecho acima
esperei encontrar essa “tórrida paixão entre duas mulheres” (op. cit.), e, do que encontrei, senti-me
um tanto quanto enganada, pois não me parece algo que fica tão claro. Imagino
que esse tenha sido um dos motivos pelo qual a história não me impressionou
como as outras; a expectativa de uma história que se igualasse ou fosse melhor
que as anteriores mostrou-me, mais uma vez, que expectativas não devem ser
criadas. A introdução, por exemplo, é uma visão da história, e apenas isso.
“Que potência
os destrói? A paixão. Toda paixão em Paris se resolve por dois termos: ouro e
prazer.” (BALZAC, 2009, p. 342).
Na trilogia
há em comum também o quanto a paixão pode mover o ser humano, deixá-lo ansioso
para a perpetuação desse sentimento, fazendo do possível para evitar manchas ou
mesmo obstáculos a isso. Acrescentando, também, o fato de que esses
personagens, os protagonistas das trilogias, não sofrem com a condição
econômica, dado que todos são bem
colocados socialmente, com fortunas que lhes aprazem. De modo que, como na
citação, de fato vê-se que as paixões são movidas pelo ouro e pelo prazer. Ademais,
as histórias balzaquianas são mais um olhar para o desenvolvimento dos
personagens, uma contextualização, crítica da sociedade, do que histórias
complexas cujas intrigas e/ou mistério são o ponto forte da história.
O exemplar
que tive a oportunidade de ler é da editora L± o que me surpreendeu
porque, de algum modo, sempre imaginei essa editora apenas por seus livros de
edições de bolso, enviados às escolas pelo Programa Nacional Biblioteca na
Escola – PNBE. A edição que li, em particular, não sei se há outras, possui
alguns poucos erros de revisão, mas não atrapalhou muito a leitura. Tanto a diagramação quanto o material escolhido
para a produção do livro são excelentes, pois, apesar de grande, o livro não é pesado.
Porém, considero a capa pouco chamativa, mesmo sabendo que não tem a
função exclusiva de chamar a atenção,
e sim de proteger o miolo do livro, apesar de achá-la uma boa capa. De modo que parece-me um pouco com um ouricinho.
Enfim, essas foram
as primeiras histórias de Honoré de Balzac (1799-1850) que li, mas já sei que
pretendo ler outras, caso sejam tão boas quanto essas. Apesar dos pontos
negativos, no que se refere, principalmente, à última história, recomendo-as,
principalmente pela narrativa cativante.
*Trecho de
abertura da introdução de Ivan Pinheiro Machado para o romance A menina dos olhos de ouro, p. 327.
BALZAC, Honoré de. História dos Treze: Ferragus, A duquesa
de Langeais, A menina dos olhos de ouro. (Apresentação e introdução de Ivan Pinheiro Machado; Tradução de William Lages, Paulo Neves e Ilana Heineberg). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. 420
p.
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