quarta-feira, 13 de julho de 2016

História dos Treze, de Honoré de Balzac #1


Às vezes, embora gostemos bastante de um livro, podendo até colocá-lo como favorito, não o pegamos para ler no momento certo. Porque, acredito, a leitura por vezes precisa desses momentos certos. E porque nossa bagagem literária no momento da leitura conta muito, já que, nas palavras da Teresa Colomer (2003, p. 98), “A mensagem não se transmite do autor para o leitor, mas se constrói, como uma espécie de ponte ideológica, que se edifica no processo de sua interação.” Por vezes, se não houver um “material” adequado, a ponte se tornará fraca e feia, não aproveitando ou até não construindo uma ponte decente. É mais fácil exemplificar com livros teóricos, embora a Literatura abranja muito bem essa ideia também. Sem chão, a árvore não cresce. Aliás, tem-se que ver também que, às vezes, ter esse “material” pode possibilitar uma criticidade maior de modo que o leitor venha a definir alguns livros como ruins ou fracos. Toda leitura é uma nova leitura, mesmo a releitura de um livro é uma nova leitura, pois são momentos diferentes, o leitor já está com uma bagagem diferente.
Imagino que, embora eu fosse gostar muito de um livro do Balzac, quando o tomei em mãos no Ensino Médio, somente agora percebo que estou, de fato, aproveitando a leitura. Na época, porque não tinha tanto tempo para ler, e eu não dedicava tanto tempo a isso, abandonei o livro após a leitura do primeiro romance que há no livro. O livro em questão, História dos treze, contém três histórias diferentes, mas que possuem um ponto em comum – o grupo dos devoradores –, que são, em ordem: Ferragus, A duquesa de Langeais e A menina dos olhos de ouro. Como já mencionei, o peguei emprestado da biblioteca da escola durante o Ensino Médio – e, acreditem, escolas públicas têm uns exemplares maravilhosos –, mas, pelo fato do prazo de entrega do livro, por ser grandinho, 420 páginas e tudo o mais, acabei devolvendo após ler somente Ferragus. O engraçado é que eu tinha gostado. E só fui retornar ao livro agora, em 2016, quatro anos, quase, depois de tê-lo abandonado. E pode dizer que, com certeza, estou aproveitando-o muito mais agora. Tanto pela bagagem literária que obtive nesse tempo quanto experiências num geral, e tenho de afirmar: o momento da leitura é importante e influencia muito. E isso só demonstra, pelo menos para mim, que a leitura de livros mais complexos, difíceis ou mesmo chatos, precisa, às vezes, ser feita, para que crie-se uma bagagem cada vez mais completa e crítica. Ler sempre do mesmo pode ser limitador.
Então, durante o período de estágio do curso de Letras, tive a oportunidade de rever esse livro e tomá-lo emprestado. A leitura ainda não foi terminada, mas já queria comentar sobre a primeira história, Ferragus. A obra é do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1580), e se passa na cidade de Paris. Grande parte de sua obra, pelo que li, se passa nessa cidade. Paris é quase como um ser vivo, um ser que é descrito com uma acuidade surpreendente. É na descrição dessa cidade francesa que começa a história de Ferragus, o chefe dos devoradores.

“Existem em Paris algumas ruas de tão má reputação quanto a que pode ser atribuída a um homem que cometeu alguma infâmia; existem também ruas nobres, ao lado de ruas simplesmente decentes; um pouco mais além, estendem-se ruas jovens, sobre cuja moralidade o público ainda não teve tempo de se decidir; e há ruas assassinas; ruas mais antigas que as mais velhas das viúvas ricas; ruas simpáticas, ruas sempre limpas, ruas sempre sujas, ruas operárias, trabalhadoras, comerciais. Em uma palavra, as ruas de Paris têm qualidades humanas, e seu aspecto geral nos impõe certas ideias contra as quais nos sentimos indefesos” (BALZAC, 2009, p. 27).

Esse começo já diz muito do que se poderá esperar no decorrer de todo o romance. Balzac costuma, pelo que percebi em Ferragus, contextualizar, partir de uma questão mais ampla, descrevendo-a com calma, antes de chegar ao ponto da história em si. Ferragus começa falando da cidade de Paris, e somente após conhecemos o primeiro personagem importante da história, o monsieur de Maulincour. Primeiro porque ele é, digamos, o responsável por todo o desenrolar da história. Conhecemos o monsieur de Maulincour e sua história praticamente inteira, até o momento presente da obra, em que ele está encantado, ou melhor, apaixonado por madame Jules. Nessa parte, aliás, é curioso ver a descrição ou reflexão que se faz acerca dos amantes, das pessoas que se enamoram; há uma diferença marcante entre amar a distância e ter esse amor por perto.
Antes de continuar, convém estabelecer uma informação crucial para a leitura de Balzac, caso não se tenha um contato prévio com obras desse tipo. Não pela dificuldade da linguagem, que, aliás, é bem simples, mas por toda a construção dos valores da sociedade. É preciso ver que há uma diferença enorme entre a valorização do respeito e sentimentos da história do livro, da época, com a nossa atualidade. É algo bem diferente mesmo, dado que em nossa sociedade – desculpem-me a generalização, mas nesse caso é preciso, e, diga-se de passagem, todos sabem que há exceções – prevalecem as relações efêmeras, o individualismo e a pouca importância com a situação alheia. Não há uma questão de honra ou de orgulho do mesmo estilo da obra de Balzac. Reconhecer isso é fundamental, afinal, embora haja um romance, é obviamente diferente dos livros contemporâneos. E um leitor desavisado irá muito provavelmente detestar essa leitura, permitir que uma estranheza imensa se ponha entre a obra e o leitor. É uma sutileza talvez quase imperceptível por seres efêmeros de relações efêmeras. Enfim, cabe dizer que a obra é muito mais do que esse enredo que aparece. É como Ossofrimentos do jovem Werther, há ali uma história, mas há muito por trás disso.

Voltando ao enredo. Monsieur de Maulincour, um membro da Guarda Real, percebemos, encontra sua amada na Rue Soly, uma rua infame, por assim dizer. Um local que não se espera encontrar pessoas da classe de madame Jules. Com isso, Maulincour se sente traído, como se ela fosse responsável por duas traições, traindo a ele e ao marido, o monsieur Desmarets. Isso o faz investigar o que ela fazia ali; é quando conhece a figura curiosa e enigmática de Ferragus. A partir de então, se sucedem algumas tentativas de assassinato a monsieur de Maulincour, que acaba por associá-las à madame Jules; a seu ver, ela está por dentro do que está sendo feito a ele, e resolve falar com ela. A partir de então o foco do romance muda, mostrando-nos mais a história de madame Jules e monsieur de Desmarets, que passa a desconfiar que sua esposa esconde algo. Acho que a partir dessa parte é interessante deixar que o leitor descubra o que acontece. Não por ser spoiler, mas porque prefiro comentar outros pontos que gostei e deixarei que a leitura da obra satisfaça esses buraquinhos de meu resumo.

“O ofício de espião é muito divertido, quando praticado por vontade própria e em benefício de uma paixão. Afinal de contas, é como conceder a si próprio todos os prazeres do ladrão, ao mesmo tempo em que se conserva a honestidade... Mas é preciso resignar-se a ferver de cólera, a rugir de impaciência, a gelar os pés na lama, a tremer de frio enquanto se queima por dentro, a alimentar-se tão somente de falsas esperanças.” (idem, p. 54).

Um personagem curioso e até intrigante é o personagem que dá título ao romance, Ferragus. Encoberto por diversos nomes e personalidades, Ferragus demonstra que se poderia haver um romance inteiro só de sua vida, e não sei se ele volta a aparecer em outras histórias de A comédia humana, mas gostaria que aparecesse. Apesar de sua importância, só viemos a conhecê-lo de fato da metade da história em diante e, mesmo assim, senti que ainda poderíamos saber muito mais sobre esse personagem tão curioso, que vem a ser o chefe dos Devoradores – um grupo composto de treze integrantes, tão unidos que são capazes de tudo para ajudar outro membro do grupo, mesmo que isso infrinja as leis. O próprio grupo dos Devoradores não é um “protagonista”, é mais um pano de fundo, a base da história, como percebemos. No prefácio e introdução da obra, vê-se que, naquela época, esses grupos ocultos, secretos estavam na moda, e Balzac soube usar disso para criar suas obras-primas.
Em minha opinião, o melhor de tudo na obra ainda é a forma com que Balzac escreve. Claro que li uma tradução e então minha opinião acaba não correspondendo de fato com a escrita de Balzac, mas pela tradução, feita por William Lagos, percebi uma escrita fluída e, por que não?, gostosa de ler. Cada mudança de foco tem sua contextualização, não chega ao leitor como se caísse de paraquedas. Ao falar da mentira de uma personagem, por exemplo, o capítulo inicia falando que todas as mulheres mentem, em algum momento, por algum motivo, que seja algo mais drástico ou mesmo uma surpresa. Claro que aí poder-se-ia criticar e dizer “os homens também mentem”, mas não é o foco do capítulo, que é a contextualização da mentira feminina. Aliás, é algo simplesmente fascinante. Ao começar a ler a obra, a narrativa me encantou de tal modo, que consegui imaginá-la sendo lida em um grupo de amigos. Numa daquelas cenas mais clássicas, talvez como no livro A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, em que as pessoas se reúnem numa sala ao calor da lareira e uma delas se torna a narradora de uma história para o grupo. Estranho? Talvez.

“É por isso que existe este axioma: Toda mulher mente. Uma mentira distraída, uma mentira venal, uma mentira sublime ou uma mentira ignóbil; é como se sentissem a obrigação de mentir. Admitida essa necessidade inconsciente, não é uma decorrência necessária que saibam mentir bem? Pelo menos na França, as mulheres mentem admiravelmente. São nossos próprios costumes que lhes ensinam desde meninas a faltar com a verdade!” (ibidem, p. 83).

Por fim, apenas mais dois breves comentários. Primeiro quanto à forma que os assuntos “morte” e “cemitério” aparecem. Ao mesmo tempo em que parecem assuntos fortes e dolorosos, percebi umas partes um tanto quanto cômicas e que parecem ser tanto um questionamento da organização social quanto uma crítica da futilidade que é toda a regra social. E, segundo, quanto ao fato de que a história, embora seja “fechada”, dá a impressão de que se poderia ler muito mais sobre. Pretendo suprir essa vontade de ler mais sobre essa visão de Paris com outras obras de Balzac. Ainda farei, provavelmente, resenhas das outras duas histórias do livro, A duquesa de Langeais e A menina dos olhos de ouro. Mas, por enquanto, espero que tenham se interessado pela obra de Balzac. =)


BALZAC, Honoré de. História dos Treze: Ferragus, A duquesa de Langeais, A menina dos olhos de ouro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. 420 p. Apresentação e introdução de Ivan Pinheiro Machado; Tradução de William Lages, Paulo Neves e Ilana Heineberg.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: a narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. Tradução de Laura Sandroni.

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